terça-feira, 14 de agosto de 2012

AS PERIPÉCIAS DA ÁGUA



Já que na postagem anterior falei sobre Cortázar não posso deixar de mencionar esse livro, lançado no final de 2010 de sobras,  inéditos (ou quase) e textos que o autor não considerava bons o suficiente para publicação(!!!!).

Será possível que um quarteto tão perfeito como esse a seguir não passou pelo seu crivo?

O que eu gosto do teu corpo é o sexo.
O que eu gosto do teu sexo é a boca.
O que eu gosto da tua boca é a língua.
O que eu gosto da tua língua é a palavra.


Porém, o melhor que o livro traz é um conto-poema (publicado uma única vez por um jornal mexicano em 1981) sobre o desejo da água de ser neve(como eu não pensei nisso antes?).


Peripécias da Água

"Basta conhecê-la um pouquinho para entender que a água está cansada de ser líquido. Prova disso é que na primeira oportunidade se transforma em gelo ou vapor, o que tampouco a satisfaz; o vapor se perde em absurdas divagações e o gelo é tosco e desajeitado, fica quieto onde pode e de modo geral só serve para dar vivacidade aos pinguins e aos gin and tonic. Por isso a água delicadamente escolhe a neve, que anima a sua mais secreta esperança, a de fixar para si mesma as formas de tudo o que não é água, as casas, os prados, as montanhas, as árvores.
Acho que deveríamos ajudar a neve em sua reiterada mas efêmera batalha, e que para isso seria necessário escolher uma árvore nevada, um esqueleto negro sobre cujos incontáveis braços vem se estabelecer a branca réplica perfeita. Não é fácil, mas se ao prever a nevada serrássemos o tronco de forma que a árvore se mantivesse em pé sem saber que já está morta, como o mandarim memoravelmente decapitado por um verdugo sutil, bastaria esperar que a neve repetisse a árvore em todos os seus detalhes e então retirá-la para um lado sem a menor sacudida, num leve e perfeito deslocamento.
Não creio que a gravidade desmanchasse o alvo castelo de cartas, tudo aconteceria como numa suspensão do vulgar e do rotineiro; em um tempo indefinível, uma árvore de neve sustentaria o sonho realizado da água. Talvez fosse destruída por um pássaro, ou o primeiro sol da manhã a empurraria para o nada com um dedo morno. São experiências que deveríamos tentar para que a água fique contente e volte a encher as jarras e copos com a alegria borbulhante que por ora reserva para as crianças e os pardais."



Cortázar, mesmo morto há quase 30 anos, ainda escreve melhor do que muita gente por aí.

2 comentários:

  1. Acho que deveríamos ajudar a neve em sua reiterada mas efêmera batalha, e que para isso seria necessário escolher uma árvore nevada, um esqueleto negro sobre cujos incontáveis braços vem se estabelecer a branca réplica perfeita. Não é fácil, mas se ao prever a nevada serrássemos o tronco de forma que a árvore se mantivesse em pé sem saber que já está morta.....
    Adorei isso!!!! Muito bom!!!
    Renata

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  2. QUE TEXTO BONITO!

    ANA COUTO

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