segunda-feira, 24 de junho de 2013

TEMPOS EXEMPLARES

Mensagem À Poesia, de Vinicius de Moraes, é um poema muito adequado a esses tempos exemplares que estamos vivendo (obrigado Whittman). 


Minha fitinha K-7 (sim, isso existiu e aqui ainda resiste), de 1977. Com treze poemas recitados/cantados pelo próprio Vinicius.


MENSAGEM À POESIA

Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível 
Agora não pode ser 
É impossível 
Não posso. 
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar 
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo. 
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte do mundo 
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo 
A saudade de seus homens; contem-lhe que há um vácuo 
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema; contem-lhe 
Que a vergonha, a desonra, o suicídio rondam os lares, e é preciso reconquistar a vida 
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os caminhos 
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso. Ponderem-lhe, com cuidado - não a magoem... - que se não vou 
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num cárcere 
Há um lavrador que foi agredido, há um poça de sangue numa praça. 
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus 
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens 
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto 
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento 
Aos homens perplexos; digam-lhe que me foi dada 
A terrível participação, e que possivelmente 
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias 
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora. 
Se ela não compreender, oh procurem convencê-la 
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe 
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me 
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado 
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento 
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado 
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa estrada 
Junto a um cadáver de mãe: digam-lhe que há 
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem 
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia 
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações 
Há fantasmas que me visitam de noite 
E que me cumpre receber, contem a ela da minha certeza 
No amanhã 
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite 
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso 
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora 
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde 
De ter de abandoná-la neste instante, em sua imensurável 
Solidão, peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale 
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir 
Não posso ir
Não posso. 

Mas não a traí. 
Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa Envergonhá-la. 
A minha ausência. 
É também um sortilégio 
Do seu amor por mim. 
Vivo do desejo de revê-Ia 
Num mundo em paz. 
Minha paixão de homem 
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha 
Loucura resta comigo. 
Talvez eu deva 
Morrer sem vê-Ia mais, sem sentir mais 
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr 
Livre e nua nas praias e nos céus 
E nas ruas da minha insônia. 
Digam-lhe que é esse 
O meu martírio; que às vezes 
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas Forças da tragédia abastecem-se sobre mim, e me impelem para a treva 
Mas que eu devo resistir, que é preciso... 
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática Num amor cheio de renúncia. 
Oh, peçam a ela 
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo 
A quem foi dado se perder de amor pelo seu semelhante 
A quem foi dado se perder de amor por uma pequena casa 
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho 
A quem foi dado se perder de amor pelo direito 
De todos terem um pequena casa, um jardim de frente 
E uma menininha de vermelho; e se perdendo 
Ser-lhe doce perder-se... 
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível 
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame 
Que me espere, porque sou seu, apenas seu; mas que agora 
É mais forte do que eu, não posso ir 
Não é possível 
Me é totalmente impossível 
Não pode ser não 
É impossível 
Não posso. 

domingo, 16 de junho de 2013

FOTOGRAFAR CEMITÉRIOS (parte 2)

Uma pergunta que não quer calar: 
Será que todo esse exercício estético me afasta ou me aproxima mais ainda dos meus mortos?










sexta-feira, 7 de junho de 2013

FOTOGRAFAR CEMITÉRIOS (parte 1)

Tá certo que é um dos cemitérios mais famosos do mundo, programa de turista, blá, blá, blá. 

 Mas como não se impressionar com o "investimento" dos seus moradores (ou daqueles que o amavam)? 

 Como desprezar a imponência, o exagero, o excepcional, o supérfluo?




sábado, 25 de maio de 2013

FERNANDO PESSOA E A ALMA DE CÔRNO


Antes tarde do que nunca.
Sou daqueles que acredita nas vidas secretas (reais ou apenas imaginadas), nas intenções, nas entrelinhas.
De forma que, para mim, a notícia da publicação de cinco sonetos inéditos de Fernando Pessoa pela revista Granta só ganhou peso quando li um deles, o Alma de Côrno. Que Pessoa era dedicado à expansão ninguém discute. Que seus 127 heterônimos dessem conta de quase tudo que é assunto acho possível, até provável. Mas não garanto, já que não sou estudioso nem pesquisador. Encontrar, portanto, um poema que trata de assunto tão mundano, foi uma upgrade na minha relação de longa data com o português.


Não nos enganemos, no soneto há bastante lirismo e erudição. Mas dessa vez, confesso, gostei mesmo foi da última estrofe, uma coisa meio Bocage, meio eu mesmo!

sexta-feira, 10 de maio de 2013

MELODIA



Cantarolo uma triste melodia, quase extinta, reminiscência da infância, coisa de mãe ou vó.
Não que elas fossem de se dar a esses luxos! Não lembro dessas artes, só de costuras, panelas chiando, panos de prato, de chão ou de limpar pratarias.
Ainda assim cantarolo essa melodia tristíssima que só posso ter aprendido com elas, naquelas quentíssimas tardes de sábado no subúrbio ou então nas férias intermináveis que tanto me faltam agora.

A melodia me abriu os demais sentidos. Vem então a invasão daquele aroma de pudim de leite recém saído do forno,  aquela textura sedosa, o caramelo cristalino. Meus irmãos e eu disputávamos uma porção extra, quase ao ponto de nos estapearmos.
Se fecho os olhos ouço o burburinho daqueles almoços de domingo, a fartura de sentimentos, mais ainda que a da mesa O pai servindo vinho e sinceridade (nem sempre bondade), ensinando-nos a viver ao seu modo sem querer impor o seu modo. Sutilezas que só entendi muito depois (às vezes, como agora, me pego descobrindo novas perspectivas).
Volto à melodia, já não parece tão triste. 
Provavelmente não era.



quinta-feira, 9 de maio de 2013

UTÁNI KÖZÖSÜLÉS


Couple, de Nicola Gilfillan 

Deitado ao teu lado respiro
um ar viciado,
mas nada amargo,
que me tinge com as mesmas cores
com as quais, há pouco,
imprimi esse halo em teu pescoço.
Não, não acredite se te digo
que essa marca é superficial.
Na realidade é tudo exceto isso.
Talvez seja um reflexo
ou apenas uma reflexão.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

DONA TERESA


Devo me descobrir a noite,
deixar que os flocos de neve
derretam em meu peito?

Sim, sonho com nevascas,

ventanias, enxurradas.
quando pesadelo são pelas cruezas das ruas e do noticiário.

Ela me lambe a cara, me arranha.
Relutante, abro os olhos, e sem saída
acompanho seu andar malicioso 
que enche o apartamento e a madrugada.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

TREINADO



Ele se lembra vagamente dos fatos: o fim do seu casamento, a mulher e os filhos o deixando; a perda do emprego de escriturário. Nunca conseguiu precisar se o exagero na bebida fora a causa ou a consequência.
A primeira noite dormiu sentado num banco da rodoviária mas logo acabou preferindo as marquises do Centro.
Por vezes, amigos dos velhos tempos tentaram ajudá-lo mas ele estava zangado demais com o mundo para resistir à tanta autopiedade destrutiva.
Em certa ocasião um pastor conseguiu levá-lo para um abrigo: cama limpa, sopa quente e orações edificantes. Mas ele  não estava pronto para ser salvo.
Foram mais de quinze anos arrastando carrinhos de supermercado repletos de tralhas inúteis, revirando latas de lixo em busca de alguma coisa que prestasse, implorando por cigarros fumados além da metade, bebendo as sobras quaisquer das garrafas alheias.
Alguns cães o acompanharam nessa jornada. Todos tiveram finais infelizes que o martirizaram mais do que sua própria condição.
Numa noite, dormindo sobre caixas de papelão, num ponto de ônibus da zona norte, foi atacado por neonazistas. Chutado, surrado, espancado.  Foram-se os poucos dentes que restavam; fraturas do maxilar e de cinco costelas. No hospital virou notícia internacional e acabou apadrinhado por uma ONG de direitos humanos. Quatro meses depois, quando saiu, estava limpo e assim continuou. Hoje trabalha na própria ONG ajudando a tirar das ruas, perdidos como ele mesmo já esteve. 
Ninguém que o conheça agora pode imaginar que esse apresentável senhor de meia idade já esteve do outro lado.
Já se passaram dezoito anos.
Os hábitos ruins seriam apenas parte da sua história se todos os dias, seu olhar treinado na angústia e na necessidade não insistisse ao vasculhar a sarjeta atrás de uma moeda perdida ou de uma guimba de cigarro pisada.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

ABRIL É O MAIS CRUEL DOS MESES



Há muitas coisas impossíveis. Uma delas é entrar em abril sem que eu me lembre dos versos iniciais de A TERRA DESOLADA de T. S. Eliot. 

Na tradução de Ivan Junqueira 

Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aléias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.



Por ser um dos poemas mais famosos do mundo (na já distante virada para o terceiro milênio esse poema foi eleito o poema mais importante do século XX) imagino que leitores contumazes de poesia o conheçam então vou aproveitar a postagem para acrescentar uma parte dos QUATRO QUARTETOS, também de Eliot, um dos meus favoritos.


O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direcção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavres ecoam
Assim, no teu espirito.
                      

sexta-feira, 29 de março de 2013

FILHA


Há exatos dezoito anos me tornei pai. Quando minha filha estava perto de fazer seu primeiro ano escrevi esse poeminha piégas onde registrei as sensações que a paternidade me proporcionava (e ainda proporciona). 

Parabéns, filhota!



FILHA

Você, criança, dormindo
é um espetáculo
dá risinhos, faz que vira
larga, pega
a chupeta e a fraldinha.

Acorda e faz chamada
busca a mãe e a esse pai
quer saber por que não estão todos
vigiando-lhe o despertar.

E quando brinca...
É tão séria como são todas as crianças brincando
traz à minha boca a panelinha
cheia de quitutes mil imaginados
e laboriosamente preparados.

Você, filha, é alegria e preocupação
não sei qual mais.
É um cuidado ao dirigir que agora tomo.
É me pegar na hora do almoço
diante da vitrine olhando bichinhos, joguinhos
e outros inhos.
É retornar ao país, seus caminhos, seus futuros.
É acreditar menos na vocação destrutiva do homem.

Para amar a Deus sobre todas as coisas é preciso amar aos filhos sobre todos os deuses.



FILHAS




Meu espaço no mundo,
meu tamanho,
meu lugar.


Minha herança para o mundo
minha marca,
meu amar.




quarta-feira, 20 de março de 2013

INCONSTÂNCIA



De todos meus defeitos, 
todo malogro
por preguiça, mal de nascença 
ou mesmo dolo.
De toda falta de jeito
ou vilania
é minha inconstância que elevo
à qualidade. 

Desatino!

Na inércia não me crio,
lodo em mim não pára.
Com tons pastéis não aquarelo
minha paleta é 
de crus,
fogo e prata.

Se hoje desvio e permito
que o repouso me agarre,
amanhã retorno

e cumpro a sorte
de ser novo,

apesar de mais antigo,
que os ouros e cobres.



segunda-feira, 18 de março de 2013

PEQUENA SUÍTE OUTONAL (POR UM TRIZ)


Evening Rainfall, 1987, de Ivan Krutoyarov

 I

Tarde.
 Quase outono. O vento,
o vento.


Exercício da solidão é modo,

não propósito.
As vicissitudes do dia a dia
são como heras.

Arrancá-las superficialmente só
adia.


II

É tarde.
 Quase a ouço. A chuva,
a chuva.
Assimilação da solidão é fim,

antes fosse apenas meio.
As incompletudes da vida
são incêndio.

Lá fora, água fria, aqui dentro
ardia.


TEU

Eve Temptation, de ENZZOK


Teu corpo sempre
enigma,
indecifrável receita,
de algum tomo esquecido.

Teu corpo sempre 

mistério,
impossível 
quebra-cabeça 
de um trilhão de peças.
 
Teu corpo sempre
crime,
insolúvel. Passional? 
Ora, qual mais seria? 

Teu corpo sempre 
pecado,
Eva e a serpente,
inimigas de fino trato. 

Teu corpo sempre 
delito,
muita perícia, muitas pistas 
mas pouco inquérito.

Teu corpo sempre 
ilícito,
deitado sobre o meu engole
cada gota do meu cerne.


domingo, 17 de março de 2013

ROSAS (PARTE 2)


Na primeira vez que a vi nua
fui seduzido de cara pelos rosas
de sua crua carne,
de suas mucosas com aroma de mar
e morte.


Com fúria sombria
escalei seu montes,
mergulhei em vales.
Vencida, sua relva revelou
um agridoce regato onde saciei
minha sede e minha pressa.

Na primeira vez que a vi nua,
perdi tudo de uma vez:
os sentidos, o juízo e as palavras.




ROSAS (PARTE 1)


Ainda lembro bem
de seu generoso abrigo,
daquelas doces e irracionais ofertas.
Não pude aceitar todas,
mas nunca regateei
os carinhos fartos.


Seus braços estendidos impediram
muitas (e muitas) vezes
minha queda.


Ainda lembro bem
dos seus rosas, daquelas tardes
que dividíamos, entre culpas
e entrega.



quarta-feira, 13 de março de 2013

SEU PRÓPRIO ESPANTO




Daquelas férias na fazenda do tio ele guarda lembranças dispersas mas definitivas. Quase todas ainda conservam aquele arcabouço de grandeza sobre o qual somente as crianças podem se erguer (naquele tempo responsabilidades e culpas ainda não tinham sido inventadas). 
O banho friíssimo no dia mal nascido; os bolos de milho que a tia fazia todas as tardes, servidos quentinhos com manteiga derretendo por cima; As goiabeiras do fundo da casa grande, tão carregadas que se curvavam como anciãos; o escarcéu dos animais no cio; a grande figueira sob a qual, todas as noites, os peões contavam histórias tenebrosas.
Mas principalmente, ele se lembra,  do seu próprio espanto quando descobriu que os porcos não conseguem olhar para o céu.