quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

EM PERSPECTIVA


Minha língua ainda recende a tua carne
morna e acridoce como aquelas manhãs
quando nos amávamos e nos odiávamos
em igual medida e desmesura.

Nem sempre a luta foi limpa.
Fazíamos vezes de amantes,
outras, de inimigos.

De tanto roçarmos o fim
ele nos envolveu como um nevoeiro.
Em perspectiva, uma coisa é certa:
A culpa não mata mais do que a saudade.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

FENÔMENO


Seus pais apontaram o fenômeno recém formado esperando que ela se maravilhasse (como um dia tinha acontecido com eles) mas a pequena não se impressionou, mais do que isso, do alto de seus quatro anos disse, encerrando a conversa e inaugurando o que seria um caminho quase sempre incômodo entre eles:

"Arco-íris e ruim porque desaparece."

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

POEMA DESALMADO




Tenho escrito poemas sem alma
posto que prezam apenas as formas e os ritmos.
Poemas que não fazem jus ao que sinto
ainda que façam ao que sou.

Tenho escrito poemas sem alma.
Pois tenho vivido sem uma!
Não a posso mais encontrar
nem ela a mim.

domingo, 27 de janeiro de 2013

17230

17230, nem mais nem menos.

Então é isso.
Meus dias estão contados.

INTERFERÊNCIAS


Meu psicanalista volta e meia dizia que eu estava desbussolado. Acabei até me acostumando. Mas foi preciso que o terceiro GPS do carro parasse de funcionar , no período de um ano, para que finalmente eu entendesse que tinha sido meu karma magnético e não algum problema nos dispositivos ou no carro. Gosto de pensar que essa tendência a estar desorientado não é tão ruim. Sem um intinerário preestabelecido há margem para descobertas no caminho. Ou dito de uma forma mais radical: só quem está perdido pode realmente se encontrar.

Desconfio que o doutor ia achar isso uma grande besteira.

sábado, 26 de janeiro de 2013

TRANSPLANTE


Durmo sobre o lado direito do corpo para que meu coração não precise suportar mais peso do que aquele com o qual o infrinjo normalmente.
Ele não é um músculo saudável. Comida pesada e sofrimentos amargos fizeram com que ele pareça pelo menos quinze anos mais velho do que o restante de mim. Suas válvulas e fibras carregam minhas dores impressas em tintas nada suaves.
Às vezes penso que ele quer vingança por tudo que lhe fiz, provavelmente ser transplantado para alguém que cuide melhor dele. Não posso censurá-lo.



COMPARTIMENTO




O que nos move secretamente.

Aquilo que nos acompanha
quando, à noite, 
fritamos entre os lençóis. 

O que não pode nos sustentar 
ou nos salvar
nem ao menos nos apoiar.

Aquilo que guardamos
num compartimento secreto
escondido até 
(principalmente?)
de nós.

Como um moedor que nos reduz.

Nossa anti-matéria,
nosso lado escuro da lua,
cadernos cheios de versos,
palavras que transbordam danos.


Aquilo que nos derrota diariamente.


O que não deve ser pensado,
ser dito,
sequer imaginado.


Ainda que jamais vivido
é tão vívido!
Ainda que jamais revivido
está tão vivo!

Aquilo que nos acompanha
enquanto fingimos que acreditamos

que amanhã as coisas irão melhorar.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

JOGUETE


Eu brincava que era rei
quando ela invadiu meu reino 

e sem piedade o anexou
ao seu império.

Eu brincava que era Deus.
quando ela chegou, riu
e meu universo guardou
entre suas pernas.

Eu brincava que éramos nós
quando ela partiu
e a brincadeira perdeu
toda a graça.

domingo, 20 de janeiro de 2013

FUNDIÇÃO


Meu coração é como ferro
fundido
retorcido
confundido 

(mais também confuso).

Meu coração é feito de sobras,
restos largados em uma serralharia.
Músculo oxidado,
ferro velho 

(mais do que antigo).

Meu coração é solda fraca
quebra fácil, pouco sustenta
o peso das ligas
e das palavras.








PRIMEIRO AMOR

He Loves Me, he loves me not 
Eugenio Zampighi

                         A magia do primeiro amor está em ignorarmos que pode acabar um dia.
Benjamin Disraeli


A gente caminhava de mãos dadas, lembra? 
Eu contava histórias, você ria.
Agora acordar todos os dias
é uma experiência de quase-morte.

A gente caminhava e conversava, lembra?
Você queria escrever um livro; eu, fazer medicina.
Agora não leio, não estudo,
e não te desejo nem má sorte.

A gente caminhava meio bobos, lembra? 
Só pensávamos em conseguir ficar mais cinco minutos juntos.
Agora ignoro o tempo,
não importa mais.

A gente caminhava sem destino, lembra?
Qualquer rua servia, qualquer praça.
Agora há apenas um 
extenso, 
abrangente e absoluto nada.

SÓ UMA IMPRESSÃO


Passou!

Graças a Deus que passou!
Meu filho, tudo na vida passa (diria meu pai).

Passou!


Tolo! A única coisa que passou foi um caminhão 

(mas que balançou o prédio inteiro, balançou).



sábado, 19 de janeiro de 2013

DEUS EX MACHINA




Ela faz parte daquele raro grupo de mulheres que não precisam ter medo da solidão. E não somente por sua beleza (quase intacta mesmo com os anos se somando). Ela tem aqueles atributos não identificáveis isoladamente mas que fazem com que os homens a queiram. E principalmente, que não sumam depois de conseguir o que queriam. Coisa de família. Sua mãe, já com sessenta e muitos, desde que separou do segundo marido, há mais de dez anos, nunca deixou de ter namorado (às vezes mais de um ao mesmo tempo).
Quando  o conheceu, há um ano e meio, apresentado por uma amiga comum, ela  não o achou particularmente bonito. Seu sorriso sim, era absolutamente encantador. Um homem que estava para entrar na faixa dos cinquenta e trazia na bagagem um casamento desfeito recentemente que havia deixado muita mágoa. Ela também vinha de um relacionamento desgastante então começaram devagar. Mas desde o início se deram bem. Ela era atenciosa e muito carinhosa. Ele mostrou-se um bom ouvinte e um amante dedicado.  Seu ponto alto foi quando, um dia, o ex dela apareceu criando confusão e ele resolveu o quiprocó com cavalheirismo.
Se viam pouco durante a semana mas começaram a passar todos os fins de semana juntos, alternando os apês, sempre muitos paparicos de parte a parte. Foi ele quem disse primeiro “Eu te amo”. A afinidade foi crescendo e a confiança se consolidando dia a dia.  É claro que ainda carregavam tristezas que de tempos em tempos se manifestavam em olhares perdidos,  pequenas ausências. Uma vez ela chorou sem motivo aparente e ele teve ciúmes, mesmo sem saber bem do quê. Em outra ocasião ele a chamou por uma apelido diferente que ela suspeitou era como ele se dirigia à ex-esposa. Deixou pra lá mas ficou o registro. Não eram crianças, sabiam que o outro tinha um passado e que teriam que conviver com isso que quisessem “dar certo”.

Para as amigas próximas ela disse que estava novamente feliz mas que jamais se casaria novamente, ou literalmente, “namorar é muito bom. Jamais estragarei isso colocando outro homem dentro de casa.”  Mas nunca falaram desse assunto diretamente. Não tinham urgência, aproveitavam a alegria de estarem conectados com alguém outra vez. A família dela o aprovou e os amigos dele a acolheram com entusiasmo.
No fim do ano ela o convidou para passar a noite de natal na casa de sua irmã. Ele ganhou uma bonita camisa e ela uma caixa de DVDs da sua série de TV favorita. Enfim tinham aquela vida sem sobressaltos que ambos  tantos desejaram quando estavam na pior.
Depois que se beijaram veio a surpresa: um anel jazia na mão dele. O  pedido de casamento veio em seguida.
Era um daqueles momentos cruciais, onde uma palavra ou mesmo uma expressão errada pode por tudo a perder, e ela sabia disso. Por que ele não podia deixar as coisas como estavam? Sim, se amavam e isso não era o suficiente? Tentava escutar seu coração mas só ouvia o medo, medo de dizer sim e tudo desandar, medo de dizer não e o perder. Um calafrio percorria-lhe a espinha. Ele, levemente emocionado pela situação e pelos dois prossecos a mais que bebeu para tomar coragem, esperava uma resposta. Ela precisava ser forte, deus ex machina por um segundo ou dois. Será que ele esquecera do desgaste que viver junto acarreta? Será que ele não lembrava mais do amor se esvaindo a cada pequena pendenga da casa. Ou por causa de dinheiro? Lembrou que suas relações anteriores também haviam começado com amor infinito e terminado às turras. “São todas assim. Ou se enterram na hipocrisia”, pensou. Sim, era isso mesmo. Com cuidado eles conversariam e tudo permaneceria igual. Ele entenderia, afinal a amava, afinal era amado, o que mais importava? Então ela segurou-lhe as mãos com firmeza, olhou-o nos olhos mas quando sua boca abriu ela disse simplesmente “sim”.


COM PETER HAMMILL NO IPOD


Meu pequeno cavalheiro,
espero que você cresça
para enfrentar os dragões
que hoje, em vigília,
tento impedir que forcem a porta do teu quarto.
E que você vença principalmente

os dragões que te habitam.
Meu pequeno príncipe,
onde você está agora?
Posso te ver mas não te encontrar.

BIOMASSA



Singro à velhice relutante,
meu corpo (às vezes) aceita,
a cabeça resiste.
Caminho por um chão de folhas mortas, galhos partidos cascas de árvores,
restos.
Afundo meus  pés
nessa matéria orgânica se decompondo.
A sensação é de vida trocando de forma.
(Ou serei eu procurando algum sentido?)
A vida trocando de forma e eu inerte.

Singro à velhice, não à maturidade.
Brincávamos de viver, um erro atrás do outro.
Um erro atrás do erro do outro!
Afundo meus pés
na areia da praia, nesses grãos imortais
porque vivos jamais estiveram.
Essa é a sorte das matérias inorgânicas:
não sofrem a queda
porque jamais conheceram o apogeu.

Ao contrário de nós.






A QUEM INTERESSAR POSSA



Um leitor ideal(izado) do blog gostaria de saber quais de minhas postagens são autobiográficas? 

Nesse caso eu responderia à moda de Philip Roth. Em uma entrevista perguntaram-lhe a mesma coisa sobre seus livros. Ele disse mais ou menos o seguinte:

"Seu questionamento está errado. Você deveria perguntar: o que NÃO é?"


domingo, 13 de janeiro de 2013

A DÚVIDA

Man Writing A Letter - Gabriel Metsu (1629-1667)

bilhete que ele muitas vezes pensou em escrever mas nunca teve coragem suficiente. Teria adiantado alguma coisa?

"Você tem noção que o teu silêncio sobre aquilo que me aflige é mais eloquente do que quaisquer palavras? Teu silêncio é a forma que você encontrou para dizer o quanto estou errado".



sábado, 12 de janeiro de 2013

SATÉLITE



Orbito,
gravito em torno dela
como um satélite errante.
Necessito coordenadas
posto que meus cálculos, minha geometria
já não servem.

Orbito,
perdido em torno dela
oriento-me apenas pelos sinais que me emite.
Navego às cegas, por instrumentos 
e cumpro sem questionar
as revoluções que me outorga.

Orbito,
habito em torno dela
sem jamais decifrar seus códigos de lançamento
lamento a artificialidade de minha cápsula. 
Temo sua trajetória caótica 
apesar disso placidamente aceito meu destino.

FIVE YEARS ON MARS



Amávamos Bowie (ainda amamos?)
Eu apresentei-lhe Five Years,
na verdade todo o Ziggy.
Ela me fez escutar Life on Mars, a sua favorita.
Fazíamos amor escutando Absolute Beginners
e dormíamos deixando rolar o Space Oddity.
Quando brigamos pela última vez
escutávamos o Pin Ups,
e ela esperou que terminasse antes de sair de casa.
Amávamos Bowie e nos amávamos.







O DIA



O dia nascia indeciso
sobre as cores que vestiria.

Com o teto  em Vênus
eu nem percebia.

O dia crescia perdido
revezavam-se  vento e calmaria.
As  horas, implacáveis,

seguiam cumprindo.

O dia corria indevido
entre a sede e a espera.
Ardiam em meus olhos
as securas
do ar e da tragédia.

O dia caia esquisito
ou era minha memória?
Esperávamos chuva?

Esperávamos trégua?

O dia morria esquecido,
sem se saber ao certo.
Com a bússola em Vênus
eu alternava pânico e regojizo.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O QUE É BONITO?



Na paz desses primeiros dias de férias, entre as centenas de músicas que escuto, uma se destaca: "O que é bonito?", do álbum "Olho de Peixe", gravado em 1992, por Lenine e Marcus Suzano.  Com uma sonoridade muito bem cuidada talvez esse seja o mais belo álbum da música brasileira (sem exagero). As composições formam um todo harmonioso e cem porcento conceitual, como gostam meus companheiros do rock progressivo. 
Em "O que é bonito"?, de Lenine e Bráulio Tavares a melodia emoldura um poema tocante e absurdamente bem construído. Para começar o ano bem!
(os negritos são meus, é claro)


O que é bonito

É o que persegue o infinito

Mas eu não sou

Eu não sou, não...

Eu gosto é do inacabado

O imperfeito, o estragado que dançou

O que dançou...

Eu quero mais erosão

Menos granito

Namorar o zero e o não

Escrever tudo o que desprezo

E desprezar tudo o que acredito

Eu não quero a gravação, não

Eu quero o grito

Que a gente vai, a gente vai

E fica a obra

Mas eu persigo o que falta

Não o que sobra

Eu quero tudo

Que dá e passa

Quero tudo que se despe

Se despede e despedaça
O que é bonito...