quinta-feira, 30 de agosto de 2012

ARMADILHAS



I


O futuro paira sobre esse possível presente
calmo como se soubesse o pouco trabalho que terá.
A rua está vazia às cinco e meia da tarde,
perdi alguma coisa mas não sei o que é.

Sempre fui meio bufão
um mandril sem modos.

Da minha trincheira
perscruto detalhes
copos vazios
uma mosca asquerosa.
Papéis, que inutilmente
procuro catalogar.
Tenho quarenta e seis
mas carrego uns oitocentos.

Da minha trincheira
avanço olhares
pescoços violados.
Nesse labirinto
acumulo dívidas com meus sonhos
que nunca serão pagas.
Tenho quarenta e seis
e principalmente remorsos.


Sempre fui meio bufão
um mandril sem modos.

Percebi com os anos
que a felicidade, no começo
é só uma imagem
mas que no fim, tem gosto.
Acre.
Logo eu que sempre me orgulhei
de ser feliz com tão pouco.


II

Quantos nós precisarei desatar
antes de abandonar de vez minhas fantasias?
Quisera ter convicções tão sólidas
quanto as tuas, onde pudesse me agarrar.

Quantos nós precisarei desatar
Se as certezas nas quais estou amarrado
não me respaldam mais?

Sempre fui meio bufão
um mandril sem modos.

A verdade é que se vou à praça
e vejo os velhos jogando damas
ou crianças brincando no balanço,
reconheço em mim um resto de humanidade
que julgara totalmente perdida.

Mas isso é pouco.
Camaleões mudam de cor para fugir do predador
mas continuam camaleões.

Quantos nós ainda precisarei desatar?

terça-feira, 28 de agosto de 2012

EU NUNCA INSISTO






As pessoas podem simplesmente viver. Sem pensar no presente.
Ou no futuro. Mas não sem pensar no passado. Como uma sombra, ele nos acompanha. Uma sombra que desafia a escuridão. À noite, ele se agiganta e nos invade, quase sempre, apenas para mostrar onde erramos. Um parasita que nos suga as forças. Posso vê-lo repetindo enquanto se dobra ao rir “eu disse, eu disse”. Muitas vezes nem é o nosso próprio passado. São os dos outros. O de nossos pais, por exemplo, com toda uma série de mal entendidos, de omissões, de descasos, de mentiras. Ou de insistências e certezas.
Ah, sim ! Há também o mundo e sua história que nos aprisiona em sua trilha imprevisível. Mesmo a mais comum das pessoas, vivendo ordinariamente, num lugar e época sem grandes solavancos, não pode escapar ileso dessa engrenagem. Barquinhos à deriva, é o que somos, quase o tempo todo.
E se não estivéssemos já bastante complicados, há o desejo. O sexo, o sexo, o sexo, sempre ele. Patrão de nossos pensamentos, meta suprema. Utilizássemos uma pequena fração do tempo que usamos pensando em sexo, com outras coisas e não haveria mais pobreza no mundo ou doenças sem cura.
Ah, o sexo e suas variantes desastrosas: o pegajoso e escorregadio amor, ou então sua forma ultra concentrada, a paixão. O sexo é o poder absoluto, a força motriz que nos faz sair da cama todos os dias. Onde não há sexo, há cinismo.
Claro que tem gente que pensa que o sexo é apenas uma ferramenta para aumentar a chance de sobrevivência da espécie. Tolice. Talvez para os outros animais. Para nós, humanos, gerar descendentes serve apenas de desculpa. O sexo é o fim. É essa mesma gente que quando envelhece sofre por não compreender porque seus desejos não cessam enquanto o corpo se deteriora.
Não confio em quem relega a importância do sexo a um segundo plano. Uns dizem-se movidos pelo gosto em ganhar dinheiro. Outros, pela busca de conhecimento. Uns hipócritas, isso sim, que se masturbam nas madrugadas sobre seus extratos bancários ou sobre suas edições luxuosas de James Joyce, quando gostariam mesmo de estar num ménage.
Mas nada pior do que aqueles que se proclamam guiados pela fé. Esses, quando sinceros, o que é raro, são uns lunáticos que nem deveriam estar livres por aí. Meu vizinho de porta, por exemplo, vive repetindo que as provações pelas quais passamos são etapas do nosso crescimento espiritual. Outra bobagem. Cada provação é só um puta azar ou uma grandíssima sacanagem de alguém. Quando foi assaltado num sinal, e levaram o seu carro, contou que no centro kardecista que ele freqüenta, um médium recebeu uma mensagem do além: ele tinha sido escolhido para salvar a mulher que dirigia o carro que vinha atrás do dele.
“A coitada ia reagir e acabar morrendo baleada.”
 “Quer dizer que foram eles? Os espíritos é que te colocaram naquela roubada ?” (que beleza de frase, roubada no sentido literal e figurado, pena que ele nem percebeu) “Por que simplesmente não tiraram ela de lá? Ou assombraram os ladrões , buuu?”
Ele me respondeu com aquele ar piedoso, de quem compreende a minha pouca evolução ”Você não entende, Frank.”
Eu não insisti. Eu nunca insisto. Eu não acredito mesmo nessa lengalenga de vida após a morte. Eu mal acredito na vida após o nascimento.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

TESTAMENTO



  Purgatory, de Sergey Tyukanov, 2007

Devo a minhas filhas um testamento
que conteste a impressão que têm de mim.
Que lhes explique com o que não pude
e por tudo o que lamento.

Pois então que recebam
estes claudicantes versos,
que se não dizem exatamente quem sou
tampouco me renegam.

Minha vida foi imaterial,
desmando e carne.
Não tive paz, por interseção divina
E graças ao diabo, nenhuma auto piedade.

Minha vida foi imaterial,
fuga e distância.
Acertei nos jogos sem aposta
E fui com tudo nos que lhes quitaram sua herança.

Minha vida foi imaterial,
alegria que antecede o declínio.
Nas vezes em que fui eu mesmo ninguém viu
Quando representei, todos vieram.

Minha vida foi imaterial,
como o amargo e doce que lutam em minha boca.
No caos completo há mais ordem
do que numa arrumação pela metade.

Minha vida foi imaterial,
poucas ações, muitas palavras.
Medido pelos meus erros,
quando pelas intenções bastava.

Minha vida foi imaterial,
poesia não enche barriga, pão a alma não conforta.
Falar tudo não significa
que dizer qualquer coisa se possa.

Minha vida foi imaterial,
Bob Dylan no iPod, gasolina na reserva.
Amor é só uma palavra
ou o verdadeiro estado da matéria?

Minha vida foi imaterial,
estrada que cruzei em disparada.
Atribuiram-me ser homem de maus fígados
quando era só tristeza engarrafada.

Minha vida foi imaterial,
uma grande asssimetria de propósitos.
Oxalá meu dolorimento não seja hereditário
para que vocês não recebam essa pecha.

Muito bem, eis o prometido:
um testemunho do meu não eu,
e da minha não memória.
Testamento é carta que não exige resposta.

O que vos deixo nesse registro, filhas minhas,
Para compra e venda não será avaliado.
É imóvel como castelo de princesa
no entanto já nasceu alienado. 

TALVEZ ANGUSTURA OU FERNET





No dia seguinte houve um churrasco na beira da piscina.  Para uns cento cinquenta convidados, quase todos amigos de Oscar e de Raja. “Parece que mamãe convidou toda a comunidade”, disse Rebeca, e emendou, ”Você viu o Rick ? Quando ele aparecer diz que meu pai quer apresentar um amigo a ele, tá ?”
Se tem uma coisa que me diverte é observar as pessoas em seu habitat natural, à vontade e sem reservas. Muito se pode aprender estudando seus  comportamentos. Percebi, por exemplo que num evento como aquele, à beira da piscina, as roupas são todas muito parecidas. Todas de excelente procedência, é claro. A diferenciação entre as sub-categorias de riqueza se dava pelos relógios e óculos escuros. Mais do que adereços esses objetos eram ferramentas para a demarcação do espaço social.
À esquerda tinha se formado o grupo do Rolex/YSL, do outro lado, o grupo Tag/RayBan e próximo ao trampolim estavam as mulheres, também conhecidas como o grupo Cartier/Gucci.
Peguei uma caipirinha de kiwi e fui me infiltrando. O grupo Rolex/YSL era liderado por Oscar e a conversa era sobre política e dinheiro, duas matérias em que vivo sendo reprovado: “ O Collor pode ter sido um filho da puta mas ele deu um empurrão na economia desse país”, dizia um homem careca e baixinho que me lembrava Nosferatu. “Você deve estar brincando, o que o FHC fez e está fazendo  é que vai transformar o Brasil.” Respondeu um outro que me lembrava o Conde Drácula. Como eu não gostava de conversa chata nem de filmes de terror, virei minha bebida e sai. Passei direto pelo grupo Tag/RayBan em direção ao bar mas pude perceber que falavam de carros. Esse grupo era formado por homens na faixa dos quarenta e cinco, cinqüenta anos, a maioria filhos ou genros daqueles outros. Mais cedo eu tinha dado uma saída para comprar pilhas para o discman e na volta, percebi que quase todos os carros que traziam os convidados eram do mesmo modelo. Comentei com Raja que me explicou que esse era um comportamento endêmico na comunidade. Já teve a época do Opala, do Santana, agora era a vez do Tempra.
No bar pedi uma coisa “mais forte” e o barman me ofereceu uma invenção dele: “ Se o doutor quiser experimentar.... Eu batizei de Miquitison em homenagem aquele lutador que não deixa ninguém de pé. É assim, doutor: leva uma parte de genebra, uma de Contreau”, suco de limão,...”
“Ah! Mike Tyson ! ...Capricha aí !.”
O troço era bom, levava alguma coisa que eu não estava conseguindo identificar, talvez angustura ou Fernet. E subia rápido. Exatamente o que eu precisava para enfrentar o papo do grupo Cartier/Gucci. Quando me aproximei percebi que quase todas usavam biquínis ou maiôs com detalhes em metais. “Detalhes” é modo de dizer porque eram fivelas, aros ou hastes, bem grandes. Eu tinha ido à praia uma semana antes de subir a serra e não tinha visto nada assim. Então, conclui, essas roupas eram a versão de vestir dos relógios e óculos. As mulheres se subdividiam em três grupos menores. O primeiro era o de jovens mamães, coisa facilmente percebível porque nenhuma delas tinha nenhuma criança por perto! Dali eu conseguia avistar o parquinho, onde uma trupe de babás cuidavam dos seus rebentos enquanto elas se lamentavam do “trabalho que os filhos dão”. Quando me aproximei do segundo grupo notei que elas falavam sobre filmes. Uma loura de uns quarenta anos, com os cabelos presos em um rabo de cavalo muito esticado, divagava  como o Dogma, com sua estética e simplicidade iria revolucionar para sempre, a indústria cinematográfica.
Eu já estava ficando meio bêbado e quase me meti na conversa. Para discordar, é claro. Nada como criar uma celeuma, um clima de embate, só para animar a tarde.
De repente, vi que Rebeca me acenava, do terceiro grupo. “Frank, o Rick ainda não apareceu ?”
“Não o vi. Estou indo acordar a Ruth mas antes vou dar uma procurada, por aí.”
 Realmente Ruth tinha me pedido para acordá-la no máximo, às duas. Nocauteei o Miquitison numa pancada só, mas ele era vingativo. Enquanto caminhava pela alameda que levava à casa principal, uma enorme borboleta amarela e laranja que dançava entre os arbustos me pareceu com uma labareda voadora. O troço era forte mesmo. De repente tudo ficou claro: era mesmo Fernet.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

O QUE NÃO É

Marcel Duchamp:"The chess game", 1910. 





Não, a vida não é uma partida de xadrez
nem viver é uma luta de boxe
não é uma viagem de trem
não é um libreto de ópera.

A vida não é uma biblioteca
ou um sonho implantado para nos controlar
não é estar no corredor da morte
a vida não é uma metáfora!

A vida não é Deus
não é mentira ou verdade
a vida não tem mistérios
não é uma caixa de chocolates.

Não tenha da vida
esperanças ou receios
a vida não é uma piada
também não é um segredo.

A vida não é o amor
não é sexo ou paixão
viver não é um pecado
também não é redenção.

Não confie naqueles
que garantem saber viver
tampouco nos que se confundem
e trocam viver por sofrer.

A vida não é uma festa
não é percorrer um caminho
não é esperar pela morte
nem acreditar no destino.

Ela não nos cobra impostos
mas também não paga salários
não é um grande investimento,
provavelmente sem volta.

Apesar das incertezas
das perguntas sem resposta
a vida é tudo o que temos
e tudo que nos faz falta. 

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

O HOMEM VELHO

Foto de Fernando Ramirex 



O homem velho não era um velho homem
com todas as implicações de experiência e sabedoria
que a antecipação do adjetivo delega.

Era velho, mas se esquecia.
E acordava criança
até que a primeira dor o despertasse para o mundo dos velhos.

O homem velho era vivido
mas inocente demais para perceber
que a velhice tem manchas e cheiros que incomodam.

À medida que o homem foi ficando velho o vigor foi minguando
os outros homens reparam nessas coisas
e ele não trabalhou mais.

O homem velho não tinha amigos.
Ele, caçula da turma, resistia,
ainda que sem convicção.

Um dia o homem velho reparou que seus filhos eram ocupados demais.
Nunca se esqueciam de uma camisa no aniversário ou no dia dos pais, 
mas não pediam mais um conselho ou mesmo um favor.

E que falta faz a esposa, amante e amada!
E se lembra dos seus últimos momentos
tão magra e fraca mas preocupada se ele tinha almoçado.

Depois  parou de trabalhar cortaram-lhe a metade do que ganhava, 
e já não podia viver sem ajuda.
E isso dói mais do que a perna quebrada em abril e que nunca sarou.

Mas acima de tudo era um homem.
E se cansou do pouco caso de Deus
e dos outros homens.

Já sonhara que saía de casa num domingo, 
dava bom dia pro padeiro
e jogava-se sob as rodas de um 472, cheio de praianos.

O trinta e oito, o genro levou pro sítio.
Remédios não! Tinha medo de falhar e do coma.
O Zé tinha tido um derrame e ficou um tempão dando trabalho.

Enquanto se tentava com essas coisas
esses planos anticatólicos, ela chegou.
Uma  leve pressão no braço, um formigamento na mão.

A falta de ar, a sede, os olhos turvos, o suor, o calor, o frio.
Não teve a vida passando em dez segundos, como num filme.
Não teve enterro de luxo, nem obituário no jornal.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

AULA DE MARKETING



Açougue Nossa Senhora de Lourdes
Mas por que diabos, o nome de santa para um açougue?
Carne fresca e pequenos animais.
Expressão infeliz.
Lembra bichos inteiros,
talvez o cachorrinho da filha menor.
O homem de avental sujo não tem bons modos,
mas tem bom preço.

Steak House
Agora, um disfarce primeiro mundo
com ares de modernidade do nome em inglês
Cortes selecionados e embalados à vácuo.
Perfeita descaracterização numa descrição vazia.
Ideal para distrair odores e esquecer o sangue.
Atendentes de alvíssimos aventais e sorrisos.
O preço é ridículo mas a embalagem é linda.

O boi era o mesmo. A morte foi a mesma.
A dor, a mesma.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

AS PERIPÉCIAS DA ÁGUA



Já que na postagem anterior falei sobre Cortázar não posso deixar de mencionar esse livro, lançado no final de 2010 de sobras,  inéditos (ou quase) e textos que o autor não considerava bons o suficiente para publicação(!!!!).

Será possível que um quarteto tão perfeito como esse a seguir não passou pelo seu crivo?

O que eu gosto do teu corpo é o sexo.
O que eu gosto do teu sexo é a boca.
O que eu gosto da tua boca é a língua.
O que eu gosto da tua língua é a palavra.


Porém, o melhor que o livro traz é um conto-poema (publicado uma única vez por um jornal mexicano em 1981) sobre o desejo da água de ser neve(como eu não pensei nisso antes?).


Peripécias da Água

"Basta conhecê-la um pouquinho para entender que a água está cansada de ser líquido. Prova disso é que na primeira oportunidade se transforma em gelo ou vapor, o que tampouco a satisfaz; o vapor se perde em absurdas divagações e o gelo é tosco e desajeitado, fica quieto onde pode e de modo geral só serve para dar vivacidade aos pinguins e aos gin and tonic. Por isso a água delicadamente escolhe a neve, que anima a sua mais secreta esperança, a de fixar para si mesma as formas de tudo o que não é água, as casas, os prados, as montanhas, as árvores.
Acho que deveríamos ajudar a neve em sua reiterada mas efêmera batalha, e que para isso seria necessário escolher uma árvore nevada, um esqueleto negro sobre cujos incontáveis braços vem se estabelecer a branca réplica perfeita. Não é fácil, mas se ao prever a nevada serrássemos o tronco de forma que a árvore se mantivesse em pé sem saber que já está morta, como o mandarim memoravelmente decapitado por um verdugo sutil, bastaria esperar que a neve repetisse a árvore em todos os seus detalhes e então retirá-la para um lado sem a menor sacudida, num leve e perfeito deslocamento.
Não creio que a gravidade desmanchasse o alvo castelo de cartas, tudo aconteceria como numa suspensão do vulgar e do rotineiro; em um tempo indefinível, uma árvore de neve sustentaria o sonho realizado da água. Talvez fosse destruída por um pássaro, ou o primeiro sol da manhã a empurraria para o nada com um dedo morno. São experiências que deveríamos tentar para que a água fique contente e volte a encher as jarras e copos com a alegria borbulhante que por ora reserva para as crianças e os pardais."



Cortázar, mesmo morto há quase 30 anos, ainda escreve melhor do que muita gente por aí.

CORTÁZAR E O BEIJO



Julio Cortázar é um dos mais importantes escritores argentinos, quiçá do mundo inteiro.
Rayuela (O jogo da amarelinha, em português) é considerado sua obra prima. O livro, de 1963 pode ser lido de duas maneiras: de forma linear do capítulo 1 ao 56. Assim a história tem um começo, meio e fim. Ou então começando no capítulo 73 e seguindo a ordem sugerida pelo autor (no total são 155 capítulos razoavelmente curtos), daí o nome do romance. Hipertexto dos bons, quando essa palavra ainda nem existia. Essa leitura traz um outro livro: misterioso, desafiador, denso, complexo.

A obra carrega diversos tipos de interpretações, já foi dissecada por estudiosos e virou teses de doutorado pelo mundo afora.




Certa vez ele disse: “O romance não tem leis, a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor.” Com Cortázar esse risco é inexistente. Pelo contrário, o perigo é perder o sono com as imagens que  são apresentadas, com a construção das frases, com a escolha das palavras.


Como não se impactar com a mais completa e arrebatadora, descrição de um beijo, que compõe o capítulo 7? 


"Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água."


Nem sei se é o meu favorito porque há tantos maravilhosos! Em particular sou fã do primeiro parágrafo do capítulo 73:
"Sim, mas quem nos curará do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, ao anoitecer, pela rue de la Huchette, saindo dos portais carcomidos, dos pequenos vestíbulos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e ataca os vãos das portas, como faremos para nos lavar da sua queimadura doce que persiste, que insiste em durar, aliada ao tempo e à recordação, às substâncias pegajosas que nos retêm deste lado, e que nos queimará docemente até nos calcinar? Então é melhor compactuar com os gatos e os musgos, travar amizade imediata com as porteiras de vozes roucas, com as criaturas pálidas e sofredoras que aparecem às janelas, brincando com um ramo seco. Ardendo assim, sem tréguas, suportando a queimadura central que avança como o amadurecimento paulatino do fruto, ser o pulso de uma fogueira neste emaranhado de pedra interminável, caminhar pelas noites da nossa vida com a obediência do sangue no seu cego circuito."



RECOMENDO FORTEMENTE A LEITURA.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

SENDA (BUSCA E FUGA PARA DECEPÇÃO E ORQUESTRA)


Profundamente inspirado por
El jardín de senderos que se bifurcan, 
J.L. Borges, Ficciones, 1944 



Percorro caminhos irrecusáveis
nessa estrada à beira mar
ou será beira amar?
Tangencio precipícios no temor
de te ver escapar.

Nuvens cinzam
chumbo que não se revela lastro
mas sim tormenta ao meu inseguro coração
que se curva como a própria estrada, e
derrapa nas lembranças.

Arrisco caminhos inexplicáveis
nesta estrada de nuvens e nanquim,
mapa que nos descreve
e me percebe.
Pele.

Mais carregadas agora
parecem menores, comprimidas.
São graves, provisórias,
mas que se beijam afirmam:
“Não queremos aguar”.

Aceito caminhos improváveis
nesta noite sem estrelas.
Estrada longa e mais estreita.
Apenas por aquilo que dissemos me oriento.
Mas foram tantas coisas!

O tempo sussura em meu ouvido
é tarde!
Sem perceber que esta confidência
não me faz seu cúmplice,
só me abate.

Percorro caminhos inexoráveis
nesta noite à meia luz
Pelo retrovisor avisto casas
que brilham os azuis de suas tevês
e emitem sons extremamente monótonos.
Finalmente chove!
Meu rosto não posso secar.

Sigo ansioso por caminhos imprestáveis
na madrugada recém acontecida.
Cruzo com viajantes irrefutavelmente sós
como são os que seres
que habitam essas horas.

No abismo onde a dor de amor se esconde,
o dia ameaça.
Úmido como meu rosto depois do choro,
áspero como minhas mãos
que no volante roçam e se rompem.

Passo por encruzilhadas implacáveis
onde as opções, mais do que imperfeitas,
são todas impossíveis.
Vislumbro o sol em seus primeiros raios
e fixo a visão até que me cego.

É nessa hora que compreendo que a viagem
apesar de infinda não foi perdida.
As de amor nunca são.
E então nestes caminhos inevitáveis
acelero
e não mais peregrino.

domingo, 12 de agosto de 2012

TERTÚLIAS



Sou homem de tertúlias
teço-as em arenas antigas
e com quaisquer contendores.
Mas que não me venham com os missais!

De altos graus 
e muitas grades.
Epicuro não me serve.
Para isso tenho um Ceará inteiro.

Ao ladear porfias 
minha permanência estendo.
Aquela mesma que antes
cedia sedento às carnalidades.

Nem sempre escapo na penúltima.
Da saúde à areia
passando pelos metais,
sou dos desperdícios.


NÃO DIGA NOITE




Não importa quanto você investe numa  pessoa,
 investe cem anos, dia e noite sem parar,
 dorme com ela na mesma cama,
 não faz diferença,
 no fim você não sabe nada sobre ela.

Amoz Oz



Compreender o outro? 
Por favor!
Se não entendo a mim mesmo!

Se minhas próprias dores não decifro,
como reconhecer as do outro?

E os desejos? Os desejos! 
Desisto.

Para piorar ainda mais,
cada um de nós é o outro do outro.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

CANTO DOS AMANTES (OU PORQUE ODEIO OS FINS DE SEMANA)




Se são nossas as tardes no meio da semana
e as mensagens logo de manhã,
flores num dia qualquer,
e-mails e bilhetes ridículos,
olhares cheirando a maçãs;
as noites de sábado parecem infinitas.
Sem escutar uma palavra, conversamos por horas,
enquanto desconfortavelmente jantamos em família.

Domingo à noite!
Quando quem trabalha chora e lamenta
ao ouvir a musiquinha do Fantástico,
exatamente é nessa hora,
que minhas esperanças se renovam
e meu coração desperta ofegante.

Porque se aproxima a segunda feira.
Porque se aproxima a segunda feira!

Se na sexta vivemos a despedida
com choro incontido, mãos que não se largavam,
amanhã viveremos uma alegria desmedida.

E perguntarão invejosos: Por que tanta felicidade?
O fim de semana foi tão bom assim?

Ah. Eles não têm como saber,
que o início foi o fim da angústia
e coisas tristes já se tornam belas
com um simples lanche juntos
e a promessa de um semana eterna.