quinta-feira, 23 de agosto de 2012

TESTAMENTO



  Purgatory, de Sergey Tyukanov, 2007

Devo a minhas filhas um testamento
que conteste a impressão que têm de mim.
Que lhes explique com o que não pude
e por tudo o que lamento.

Pois então que recebam
estes claudicantes versos,
que se não dizem exatamente quem sou
tampouco me renegam.

Minha vida foi imaterial,
desmando e carne.
Não tive paz, por interseção divina
E graças ao diabo, nenhuma auto piedade.

Minha vida foi imaterial,
fuga e distância.
Acertei nos jogos sem aposta
E fui com tudo nos que lhes quitaram sua herança.

Minha vida foi imaterial,
alegria que antecede o declínio.
Nas vezes em que fui eu mesmo ninguém viu
Quando representei, todos vieram.

Minha vida foi imaterial,
como o amargo e doce que lutam em minha boca.
No caos completo há mais ordem
do que numa arrumação pela metade.

Minha vida foi imaterial,
poucas ações, muitas palavras.
Medido pelos meus erros,
quando pelas intenções bastava.

Minha vida foi imaterial,
poesia não enche barriga, pão a alma não conforta.
Falar tudo não significa
que dizer qualquer coisa se possa.

Minha vida foi imaterial,
Bob Dylan no iPod, gasolina na reserva.
Amor é só uma palavra
ou o verdadeiro estado da matéria?

Minha vida foi imaterial,
estrada que cruzei em disparada.
Atribuiram-me ser homem de maus fígados
quando era só tristeza engarrafada.

Minha vida foi imaterial,
uma grande asssimetria de propósitos.
Oxalá meu dolorimento não seja hereditário
para que vocês não recebam essa pecha.

Muito bem, eis o prometido:
um testemunho do meu não eu,
e da minha não memória.
Testamento é carta que não exige resposta.

O que vos deixo nesse registro, filhas minhas,
Para compra e venda não será avaliado.
É imóvel como castelo de princesa
no entanto já nasceu alienado. 

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