quinta-feira, 2 de agosto de 2012

AS GRANDES ASAS AZUIS AMPLIANDO A MINÚSCULA TRAGÉDIA



A menina, tão logo teve tamanho, começou a estudar piano duas vezes por semana. Já no aniversário seguinte de sua avó, tocou o tema da Lista de Schindler.
 “-Essa menina é como o pai. Um prodígio, em tudo o que faz”, disse vovô Oscar orgulhoso, causando ciúmes até em Rebeca.
Rick estimulava a filha, propondo desafios e tratando-a como se tivesse dez anos a mais. Intuitivamente, ela correspondia ao entusiasmo do pai com alegria, o que alimentava ainda mais em Rick a certeza de que estava no caminho certo. A cada etapa superada ela era premiada com pequenos direitos, como escolher o restaurante do fim de semana, e até o destino da viagem de férias da família. A mãe da pequena nadadora, pianista, bailarina, usuária de computador, estudante de várias línguas, não aprovava tantas atividades. E menos ainda o caráter meritocrático da premiação para uma criança que ainda nem tinha entrado para a escola. Mas ninguém lhe dava ouvidos. Até Raja dizia que ela estava exagerando, “- Não tem nada demais, filha. Errado seria não aproveitar o potencial que ela tem.”
 Nem tudo dava certo. Um dia ele começou a alfabetizá-la. Mas aos dois anos de idade ela não tinha o desenvolvimento necessário. Durante três semanas ele tentou de tudo, desde as experiências bem sucedidas às técnicas de vanguarda. Em vão. Em outra ocasião quis ensina-la a jogar xadrez. Desta vez ela tinha a idade certa mas odiou o jogo a ponto de arremessar as peças pela janela várias vezes. Ele queria saber o porquê da implicância para tentar argumentar, só que quando Clara cismava... Nestas horas, Rebeca crescia na argumentação, “-Estas atitudes são para reforçar sua individualidade. Ela está gritando por espaço”. Porém ela também não compreendia certos rompantes, uma sensibilidade à flor da pele, sem mais nem menos. Como aquela vez, quando voltavam de viagem e uma borboleta se espatifou contra o pára-brisa do carro e ficou grudada, as grandes asas azuis ampliando a minúscula tragédia.
 “-Ela morreu ?”
Rick anteviu o drama e quis consertar, “Sim filhinha, mas borboleta só vive mesmo alguns dias”.
Quando percebeu que dera a resposta errada, era tarde demais.
“Por isso mesmo ela tinha que viver mais” , e começou a tremer o lábio inferior, e logo o queixo. Já gemia quando a primeira lágrima pingou no seu colo. Nos trinta e sete minutos seguintes, chorou. Do pedágio até um pouco antes do carro entrar na garagem, quando pegou no sono. Rebeca tentou acalmá-la cantando, propondo jogos, tirando da bolsa um kit de brinquedos salvadores e até oferecendo chocolate (o que em outras circunstâncias irritaria Rick). Nada surtiu efeito. Entre soluços, esboçava “-Só vi-vi-vi-ve me-me-mes-mo al-al-alguns di-di-di-as, só vi-vi-vi-ve me-me-mes-mo al-al-alguns di-di-di-as ”. Rick, sem saber o que pensar, acelerava mais e mais a Pajero.

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