sexta-feira, 29 de março de 2013

FILHA


Há exatos dezoito anos me tornei pai. Quando minha filha estava perto de fazer seu primeiro ano escrevi esse poeminha piégas onde registrei as sensações que a paternidade me proporcionava (e ainda proporciona). 

Parabéns, filhota!



FILHA

Você, criança, dormindo
é um espetáculo
dá risinhos, faz que vira
larga, pega
a chupeta e a fraldinha.

Acorda e faz chamada
busca a mãe e a esse pai
quer saber por que não estão todos
vigiando-lhe o despertar.

E quando brinca...
É tão séria como são todas as crianças brincando
traz à minha boca a panelinha
cheia de quitutes mil imaginados
e laboriosamente preparados.

Você, filha, é alegria e preocupação
não sei qual mais.
É um cuidado ao dirigir que agora tomo.
É me pegar na hora do almoço
diante da vitrine olhando bichinhos, joguinhos
e outros inhos.
É retornar ao país, seus caminhos, seus futuros.
É acreditar menos na vocação destrutiva do homem.

Para amar a Deus sobre todas as coisas é preciso amar aos filhos sobre todos os deuses.



FILHAS




Meu espaço no mundo,
meu tamanho,
meu lugar.


Minha herança para o mundo
minha marca,
meu amar.




quarta-feira, 20 de março de 2013

INCONSTÂNCIA



De todos meus defeitos, 
todo malogro
por preguiça, mal de nascença 
ou mesmo dolo.
De toda falta de jeito
ou vilania
é minha inconstância que elevo
à qualidade. 

Desatino!

Na inércia não me crio,
lodo em mim não pára.
Com tons pastéis não aquarelo
minha paleta é 
de crus,
fogo e prata.

Se hoje desvio e permito
que o repouso me agarre,
amanhã retorno

e cumpro a sorte
de ser novo,

apesar de mais antigo,
que os ouros e cobres.



segunda-feira, 18 de março de 2013

PEQUENA SUÍTE OUTONAL (POR UM TRIZ)


Evening Rainfall, 1987, de Ivan Krutoyarov

 I

Tarde.
 Quase outono. O vento,
o vento.


Exercício da solidão é modo,

não propósito.
As vicissitudes do dia a dia
são como heras.

Arrancá-las superficialmente só
adia.


II

É tarde.
 Quase a ouço. A chuva,
a chuva.
Assimilação da solidão é fim,

antes fosse apenas meio.
As incompletudes da vida
são incêndio.

Lá fora, água fria, aqui dentro
ardia.


TEU

Eve Temptation, de ENZZOK


Teu corpo sempre
enigma,
indecifrável receita,
de algum tomo esquecido.

Teu corpo sempre 

mistério,
impossível 
quebra-cabeça 
de um trilhão de peças.
 
Teu corpo sempre
crime,
insolúvel. Passional? 
Ora, qual mais seria? 

Teu corpo sempre 
pecado,
Eva e a serpente,
inimigas de fino trato. 

Teu corpo sempre 
delito,
muita perícia, muitas pistas 
mas pouco inquérito.

Teu corpo sempre 
ilícito,
deitado sobre o meu engole
cada gota do meu cerne.


domingo, 17 de março de 2013

ROSAS (PARTE 2)


Na primeira vez que a vi nua
fui seduzido de cara pelos rosas
de sua crua carne,
de suas mucosas com aroma de mar
e morte.


Com fúria sombria
escalei seu montes,
mergulhei em vales.
Vencida, sua relva revelou
um agridoce regato onde saciei
minha sede e minha pressa.

Na primeira vez que a vi nua,
perdi tudo de uma vez:
os sentidos, o juízo e as palavras.




ROSAS (PARTE 1)


Ainda lembro bem
de seu generoso abrigo,
daquelas doces e irracionais ofertas.
Não pude aceitar todas,
mas nunca regateei
os carinhos fartos.


Seus braços estendidos impediram
muitas (e muitas) vezes
minha queda.


Ainda lembro bem
dos seus rosas, daquelas tardes
que dividíamos, entre culpas
e entrega.



quarta-feira, 13 de março de 2013

SEU PRÓPRIO ESPANTO




Daquelas férias na fazenda do tio ele guarda lembranças dispersas mas definitivas. Quase todas ainda conservam aquele arcabouço de grandeza sobre o qual somente as crianças podem se erguer (naquele tempo responsabilidades e culpas ainda não tinham sido inventadas). 
O banho friíssimo no dia mal nascido; os bolos de milho que a tia fazia todas as tardes, servidos quentinhos com manteiga derretendo por cima; As goiabeiras do fundo da casa grande, tão carregadas que se curvavam como anciãos; o escarcéu dos animais no cio; a grande figueira sob a qual, todas as noites, os peões contavam histórias tenebrosas.
Mas principalmente, ele se lembra,  do seu próprio espanto quando descobriu que os porcos não conseguem olhar para o céu.

segunda-feira, 11 de março de 2013

ESTRAGO




Ouço um estalo,
dou um passo. Não vem de dentro
ainda que a estrutura 
toda se retraia.

Elogio sua beleza,
ela retribui. Será demência
ou é um tipo de amor 
que sinto nesse trato?

No fundo sou um menino bobo,
pouca ação e muitas falas. 
Sem jeito, me calo
e apenas ouço o estrago.


Drowning in Silence, de Jiri Dvorsky

sábado, 9 de março de 2013

DÉJÀ VU



O celular toca no meio da tarde. Sem meus óculos não vejo o número de quem liga. Atendo, a voz é de homem e me soa vagamente familiar. Quando finalmente a identifico vem a consternação: sou eu mesmo do outro lado, na realidade um eu de anos atrás. Nossa conversa é caótica, um Déjà Vu perturbador. Ele me odeia por muitas coisas, algumas com motivo, mas principalmente pelo que represento: seu fracasso iminente. Eu próprio já estive do outro lado da ligação, também cheio de certezas. Não consigo convencê-lo da inutilidade de tudo aquilo. Quanto mais ele vocifera mais cansado eu fico. Depois de alguns minutos encerramos sem chegarmos a qualquer conclusão, é claro.
O episódio todo parece um infeliz conto borgeano. Horas depois ainda ouço-lhe a voz.

sexta-feira, 8 de março de 2013

CADERNOS



Não tenho problema algum em escrever "no computador" (ou mesmo no bloco de notas do iPod ou do celular); a tela vazia não me apavora mais ou menos do que uma folha em branco. Algumas vezes até, já escrevi diretamente neste blog, sem rascunhos de qualquer natureza, apenas com e pelo  calor que emana das palavras.
Porém, porém, porém... 

EU GOSTO MESMO É DE CADERNOS!

terça-feira, 5 de março de 2013

DÍVIDA

Afraid, de Tatomir Pitariu

Devo, não nego,
pagar por meu alheamento,
sobre esses versos insipientes
deitar-me só.

Devo, não nego,
aceitar essa singularidade
como reflexo de meus desatinos
e de meus não atos. 

Devo, não nego,
caminhar por estreitas vias.
Essa minha estreita vida
labiríntica.

domingo, 3 de março de 2013

CALMARIA É MEU SOBRENOME


"Destructive Rain"de InperFectionCreation


Uma miríade de lembranças me invade.
Nossas chuvas! Nossas chuvas!
Aquela tempestade de raios que saboreávamos
entre beijos de gosto amargo.
Oh, and all I taught that was everything
Oh, I know she gave me all that she wore
And now my bitter hands chafe beneath the clouds
Of what was everything?
Oh, the pictures have all been washed in black, tattooed everything
Aquele vigor destrutivo não mora mais aqui.
Calmaria é meu sobrenome hoje.