terça-feira, 26 de junho de 2012

CIDADE





Na fundação mítica dessa cidade
em que cemitérios foram inaugurados
antes dos teatros,
estava escrito que estaríamos condenados
a nunca a estrear.

Nossa música não é samba
não é funk, nem chorinho
(apesar do nome apropriado).
Aqui se toca a marcha funesta
das mortes no fogo cruzado.

Essa cidade não tem horizontes
só enxergamos o quintal!
Qualquer batuque de lata
e achamos que é carnaval.

Nada disso tem a ver
com gostar desse lugar.
A sujeira de nossas praias
não tem cheiro no cartão postal.

Nem importa se o que vemos
está realmente lá.
O Corcovado talvez seja
um efeito especial.

Mas nos ufanemos,
é necessário, é preciso:
Maravilhosa!
E sempre será!
Não a critique, que o turista
estrangeiro vai se espantar.

Minha cidade é mãe, madrasta,
irmã, amiga,
amante apaixonada.
Puta descarada!

Às vezes a amo,
outras, a odeio demais.
Somos como o fogo e a água
que se entendem,
mas não devem se tocar.

Um dia talvez a deixe,
pode ser que eu morra aqui.
Mas indo ou ficando,
nunca,
irei realmente partir.

INTERVENÇÕES URBANAS

Adoro grafites.
Adoro cruzar a cidade e vislumbrar essas obras de arte me seguindo. Há uns dois anos, eu e Alice, minha fiel escudeira, começamos a fotografá-los. Sem pretensão. Por amor à arte. Nesse tempo alguns desapareceram, outros surgiram.
Grafite é movimento.
Hoje capturei o pessoal do SANTA CREW em ação. Conversei com a galera, sorvi muito daquele momento criativo. Bicos e tintas, ideias e rascunhos. Ideais!
Deefinitivamente: GRAFITE É ARTE MAIOR!


 LAGOA

 ENTRADA DO TÚNEL VELHO

FLAMENGO

COPACABANA

LARANJEIRAS

 JARDIM BOTÂNICO

TIJUCA / MARACANÃ

LEOPOLDINA

BOTAFOGO


 SANTA TERESA




segunda-feira, 25 de junho de 2012

OU COMO O AMOR QUE NUNCA ACABA



"A solidão como secreta soberania"
Célia Machado
Técnica Mista
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Minha mulher, que é psicóloga, diz que é na infância que construímos a base emocional que regerá nossas relações afetivas na vida adulta. Tentei provar que esta teoria estava errada. Tentei provar sendo feliz. Não logrei. Não considerei o incomensurável poder da vontade dos outros. 
Eu pensava “os outros são tão iguais, mesmas idéias, mesmos desejos, todos querendo comprar apartamentos em prédios com playground, carros com ar condicionado, passar férias na praia. Mas não eu. Minha vida não teria espaço para lugares-comuns, não deixaria que os acontecimentos me subjugassem. Eu me achava único e especial.

Só recentemente entendi que uma das coisas que tornam as pessoas mais iguais é que todas se acham diferentes das outras. 
Eu ia vencer. E vencer não era apenas ganhar dinheiro, eu ia realizar. Isso mesmo, realizar era o meu norte. Realizações, e o resto viria como consequência. Ah, eu também achava que a felicidade era a meta, mas aí li em algum lugar que a felicidade era o caminho. Não importa mais, porque agora sei que a felicidade é outra invenção. Como Deus. Ou como o amor que nunca acaba. 
Os psicólogos condicionam quase tudo que passamos ao que aconteceu na infância, é como se a vida adulta fosse só um destino. Meus antecedentes eram tão ruins nesse ponto que eu não podia aceitar que fosse assim. Mas olhar para trás é como cavar um buraco na areia da praia. Quando a água começa a brotar não importa quantos baldes se retire, sempre junta mais e mais, até que as paredes começam a ceder, a acumular no fundo, então, de repente, apesar de todo o esforço, tudo desmorona de uma vez.
Não conheci minha mãe. Ela morreu quando eu ainda era um bebê. A única fotografia em que aparecia era um quadrado dez por dez com cores desbotando e muitas pessoas. Olhei tanto que decorei quantas listras apareciam na calça que ela usava ou quantos talheres haviam sobre a mesa. Foi tirada num almoço na casa de um amigo do meu pai, semanas após eles se casarem. Os dois eram bonitos e pareciam felizes, o grupo posava para um brinde. Durante toda a nossa infância tampouco conheci quaisquer outros parentes por parte dela, avós, tios ou primos. Crer na sua existência era um ato de fé sustentado por aquele pedaço de papel. Num pesadelo recorrente eu perdia a foto e Dona Eufrásia, da casa em frente, se apresentava como minha mãe. Eu nunca tinha visto uma certidão de nascimento e quando vi a minha, pela primeira vez, com o seu nome e o meu, juntos num documento oficial, foi como presenciar uma aparição. Por um segundo, achei que lembrava do seu rosto e que ela era realmente bonita.
Em casa não se falava nela, nunca soube de que comida gostava, qual a sua cor favorita ou se ela torcia para algum time de futebol. Talvez eu tenha perguntado mais quando era bem pequeno mas a partir de um certo instante percebi, como todas as crianças fazem, que esse era um assunto a ser evitado. 
No primário, quando se aproximava o dia das mães e as professoras se empenhavam em criar presentinhos feitos de sucata, aventais de sacolas de supermercado ou porta guardanapos com rolos de papel higiênico, eu me protegia desviando a atenção do significado. Era como se fosse o dia do primo marciano. Eu fazia os trabalhos com o maior capricho, decorava com corações, colocava até seu nome mas não me deixava tocar abaixo da superfície. 
Mas sorria.
Numa apresentação, na quarta série, enquanto sorria e cantava musiquetas cheias de ternura, Dudu, um menino que tinha perdido a mãe num desastre, um ano antes, chorava desesperadamente no colo da professora. Na semana anterior ele teve dor de cabeça quase todos os dias, fez cocô na calça e rasgou um cartaz, com recortes de revistas, cheio de mães felizes e seus filhos limpinhos. Seu pai compareceu e as mães se acotovelaram para consolar o viúvo, que parecia muito bem. À mim eram dirigidos olhares divididos entre piedade, “coitadinho, este também não tem mãe”, e admiração pela minha capacidade de superar. Minha irmã, esperava, com olhos mareados, a hora da sua turma, no lugar reservado para minha mãe, o que não era totalmente inadequado. Quando voltamos para casa, ela deu um porta-panos-de-prato para a vovó e eu abandonei meu porta-magiclick junto aos papéis velhos que se entulhavam na parte de baixo da mesa de estudos.

domingo, 24 de junho de 2012

BEIJO NA BOCA



The Kiss
1907-08
KLIMT, Gustav
Oil and gold on canvas
180 x 180 cm
Osterreichische Galerie, Vienna



O beijo na boca
não tem explicação.
Não há no mundo, cientista
que lhe dê a razão.

Beijar não é higiênico
ao organismo causa estranheza
milhões de bactérias indo e vindo,
disto tem-se certeza.

Mas os amantes nem ligam
tão concentrados que estão
em fazer línguas e dentes
instrumentos da paixão.

E nessa hora, de perder a condução
vai-se completamente o receio
já que para o bom beijo na boca
faz falta usar o corpo inteiro.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

NI DISCOS DE BOB


PEZ é uma banda de rock em atividade desde 1993, capitaneada por Ariel Minimal. Com suas guitarras distorcidas e letras que tratam das angústias nossas de cada dia, Minimal fez da banda uma singularidade dentro do, já bastante rico, rock argentino.

Quando Minimal se tornou pai, as letras das canções não passaram incólomes à essa mudança. Um dos melhores exemplos é NI DISCOS DE BOB, do álbum LOS ORFEBRES (2007), o décimo da carreira do grupo e meu favorito. 
A letra enfrenta com um lirismo arrebatador a dificuldade de um pai em se fazer entender pelo filho, a dificuldade entre "ser" e "ser pai".



Ni discos de Bob, ni yoga, ni inciensos, ni anís, ni drogas
Sólo tus ojos y ese cielo que veo ahí y sí, es así, dios existe en vos

Despacio, que mañana se hizo hoy y yo siendo como soy ni lo vi venir
Y no se si podrá resistir mi corazón
el embate frontal de ese brillo feroz,
el nervio vital de tus ojos de hoy

Que sin palabras me dicen quién soy, tu padre al fin, espero hacerlo bien…
lo comprenderás, lo comprenderás, lo comprenderás… 






segunda-feira, 18 de junho de 2012

OLHAR SOBRE AS COISAS



Paraveromundoéprecisosepararascoisas
dasoutrascoisasedomundo
separaromundodascoisas
équeascoisassemisturam
nãosãoclarasseconfundem
necessitamdonossoolhar
parasetornarem
visíveis.
Mas esse olhar mais nos revela
Do que as próprias coisas.
Que para isso existem.
Que por isso estão lá.


domingo, 17 de junho de 2012

AKINETÓN RETARD





Era 7 de setembro de 2005, pleno feriado da independência. Nesse dia conheci a banda chilena AKINETÓN RETARD. O grupo chileno trouxe sua  música inclassificável e me deixou com a cabeça cheia de possibilidades. 
Arte muito refinada é o que essa rapaziada faz. Dizem que eles lembram o Magma ou o Soft Machine. Só sei que eu lembro deles!





Prezo a desordem das coisas
o incontável, o inconstante.

Não que por padrões geométricos
minha mente não se perfile.
Mas pelo caos ela abre as pernas!

Prezo a desordem nas coisas
o insólito, a reviravolta.
Para a mão e ideias que tremem, veja só, 
ministro a mesma medicina.

Prezo a desordem às coisas
a falta de rimas, os falsos versos.
E prezo o jazz, essa vaga.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

NÊMESIS


Os títulos dos livros de Philip Roth não entregam tudo de uma vez. Eu gosto disso! Gosto de vislumbrar as camadas que vão se descortinando a cada página, a cada capítulo, a cada leitura. Como  ilusionista habilidoso que é, Roth faz o truque render, instiga a platéia tentar adivinhar seus segredos.
Em O Animal Agonizante (2006), logo de cara somos levados a pensar que o título se refere ao personagem principal, o professor de História da Arte David Kepesh. Sua paixão por uma mulher extremamente bonita e bem mais jovem, traz à sua vida, outrora livre de compromissos e principalmente de imperativos emocionais, dilemas que ele não podia imaginar e muito menos enfrentar. Porém, a medida que a história se desenvolve, outras suspeitos aparecem, já que há a morte (sofrida) do seu melhor amigo, e finalmente a terrível revelação de que a mulher tem uma doença gravíssima.
Quase ao final das 127 páginas que compõe o romance (sim, isso tudo se passa em apenas 127 páginas) percebemos que somos nós, todos nós, de uma forma ou de outra, animais agonizantes. Independentemente de nossa idade, saúde (ou falta dela), medos e até coragens!

Em Nêmesis (2011), seu último romance, não é diferente. Vejamos o que a consulta ao Google revela:

Nêmesis é uma palavra em latim que significa uma fonte de dano ou ruína,
Um oponente que não pode ser batido ou ser superado,
O que inflige retribuição ou vingança,
Um rival formidável e normalmente vitorioso,
Algo que uma pessoa não pode conquistar, alcançar. Exemplo: o teste de desempenho provou ser meu nêmesis.
Na mitologia grega Nêmesis é a deusa da justiça ou da vingança.

Bem, estamos em 1944, num subúrbio da pacata Newark, a poliomielite ainda não tem cura e um surto dessa doença ameaça aquela população mais do que a própria segunda guerra, a essa altura, perto do fim. Conhecemos Eugene “Buck” Cantor, 23 anos, professor de educação física, atleta vigoroso, rapaz de excelente caráter e de bom coração.
Percebemos que a tragédia se abaterá sobre ele mas não sabemos ainda como. Buck vai ser colocado à prova mas por que algoz? Indícios são dados e suprimidos. Seu rival ora é a pólio que atinge as crianças da comunidade e ameaça seu vigor físico, ora é sua vergonha por ter sido preterido no alistamento militar devido à uma severa miopia. Num certo momento é o próprio Deus (ou pelo menos é isso que ele acredita).

Buck tenta fugir do seu destino retirando-se para a idílica Indian Hill, uma colônia de férias, afastada da cidade e da doença. Lá, faz amor com sua noiva, sobre cascas de bétula, como se fossem Adão e Eva. Lá, Buck salta do trampolim como o Tarzan de Johnny Weissmuller. Os mitos do paraíso na terra e do bom selvagem (principalmente e explicitamente o do índio norte americano) são evocados para em seguida serem habilmente destroçados pelo autor.

Página após página o pobre Buck vai permutando as certezas de fazer o certo por dúvidas, dúvidas por culpa, até que finalmente a culpa passa a ser sua nova certeza. Ele, que perdera a mãe no parto, mas que até ali convivera com esse fato bastante bem, não pode mais conceber uma tragédia sem culpado. E como o Deus que ele questiona não se encaixa no modelo pra tanto mal, ele próprio se coloca disponível para sê-lo.

No todo é um romance envolvente, mas confesso, ressenti que a transição para o final foi rápida demais (aliás, fato que observei também nos três outros volumes dessa tetralogia que trata de muitas coisas mas principalmente do enfrentamento da finitude).

Não pude deixar de notar como, em vários momentos, Roth saboreia a expressão “pátio de recreio”, local onde ocorre o estopim da trama. Exatamente como Charles Bukowski fez em vários de seus textos, principalmente em Kid Foguete no Matadouro  onde temos:
“Saí, atravessei a rua, entrei num bar mexicano, tomei cerveja, depois peguei o ônibus. Tinha sido novamente derrotado pelo pátio de recreio das escolas americanas”.
Cá entre nós? Essa daria uma bela epígrafe ao Nêmesis de Roth.

terça-feira, 12 de junho de 2012

NEM SEMPRE UMA CARA FEIA QUER DIZER NÃO TE AMO MAIS



A última sexta-feira do mês era o dia de colocar a conversa em dia. Há cinco anos instituímos este compromisso para não perdermos o contato.
Conversar e beber, as únicas coisas simples da vida. Pelo menos a segunda.
Na Adega Pérola, Beto, o único garçom, controlava os pedidos em papéis cortados à faca presos com borboletas de metal, numa tabuleta pendurada na parede. Tudo lowtech, tudo funcionando. Chegamos na hora perfeita, entre a saída do pessoal que emendou o almoço e a turma do fim da tarde, e meia hora depois já estávamos calibrados.
“Rick, deixa eu te lembrar uma coisa: as pessoas são mais possessivas quando se trata de amor do que de dinheiro.”
“Deixa de filosofar, Frank, e pede mais dois.”
Nem foi preciso. Beto identificou nossos copos quase no fim e acenou que já ia trazer mais.
Acrescentei, “Mas se para os homens, o sexo é que baliza a posse, trair é trepar; as mulheres tem outra visão, no meu entendimento, mais avançada. Para elas, uma intenção pode ser tão, ou até mais terrível do que o ato. Infelizmente, é uma sutileza que aprisiona. Um bilhete encontrado no bolso da camisa pode envenenar, deu mole pra ela, safado, eu te odeio, está tudo acabado entre nós, essas coisas. Nós somos mais realistas. Imagine se alguém conta que tua mulher está sendo assediada por um colega do escritório. O que você quer saber imediatamente? Ela deu? Ah, foi só um flerte ? Então, tudo bem, faz parte do jogo.”
 “Mas isso, só quando o homem não está completamente apaixonado, né? Senão tudo isso é bobagem, o cara se emputece , parte pra porrada...”
 “-Você não está entendendo. Os homens pensam em sexo uma vez a cada minuto enquanto as mulheres apenas uma vez a cada vinte e quatro horas! O sexo é o divisor de águas para os homens, para as mulheres é a cumplicidade, o compromisso. Nos últimos anos isso anda meio zoneado, muita gente conseguiu mesclar as duas idéias.”
“Sempre cheio de explicações simples para tudo. Mas o mundo tem outros tons além do branco e preto. Eu me pego pensando bobagens todos os dias, tudo o que construímos, a vida toda, pode estar por um triz.”
Será que ele estava com problemas no casamento? Não! Era somente uma conversa teórica entre amigos. De qualquer jeito, resolvi incomodar. Nossa amizade até permitia uma abordagem mais direta, porém eu queria uma revelação inconsciente, algo ia acabar aparecendo, então cutuquei.
“Branco e preto não são tons, são cores, e eu não reduzo as relações a sim ou não, feliz ou infeliz. Você é quem age assim, ou faz coisa pior: você as idealiza. Imagina que sabe o que o outro pensa, ou quer. Nem sempre um sorriso quer dizer tudo bem. Nem sempre uma cara feia quer dizer não te amo mais. O que há são mais tons de cinza que os duzentos e cinqüenta e seis que o monitor consegue mostrar.”
Ele mordeu a isca e atacou.
“Sempre com a sua ironia, suas sacadas geniais, o espirituoso frasista. Mas isso não ajudou a manter seus relacionamentos, quando elas descobrem que além dessa camada de intelectual divertido há um egoísta que não quer ter filhos porque fez a conta de quanto isso vai custar, elas caem fora.”
Essa resposta me colocou em alerta. Tentei captar o que estava passando, recapitular nossos últimos encontros em família. Quando tinha sido a última vez que eu tinha estado com eles? Lembrei, foi no aniversário dele. Não notei nada diferente, uma festinha como todas as outras.
“É verdade. Fiz e a mantenho atualizada para não errar por falta de conhecimento. Parto, creche, escola, viagens de férias, plano de saúde, curso de inglês, esportes, universidade, está tudo lá. O custo/benefício de ter filhos hoje em dia não compensa. É um investimento irrecuperável.”
“E o amor como fica ? Filhos são uma conseqüência lógica do amor. Não querer ter filhos, Frank, é admitir seu fracasso no amor.”
“Sobre ter filhos vou dizer o que eu penso. Durante muito tempo eu achei que as pessoas queriam ter filhos para ter quem as amasse para sempre. E pensava o quanto isso tinha de egoísmo. Um amor que sobrevivesse as paixões e aos casamentos. Recentemente percebi o quanto eu estava errado. As pessoas têm filhos para ter alguém que possam amar para sempre. Isso exige muito mais egoísmo.”
“Vou dizer o que penso”, disse elevando a voz. “É muita pretensão se julgar capaz de saber a motivação das demais pessoas. Então, quem vai generalizar agora sou eu. Como todo homem sozinho, traído e mal amado você desdenha dos que souberam consolidar uma vida diferente da sua. Tua conversa é o papo clássico de corno.”
Definitivamente as coisas não estavam cem por cento e ele não estava pronto para pedir ajuda. Ou era eu que continuava imaginando problemas inexistentes? Nem tínhamos bebido tanto assim. Rick tinha um problema com a solidão. Para ele, viver só, era a forma derradeira de fracasso. Por outro lado, já tínhamos rido tanto com a história da obra que fiz no apartamento. Ao derrubar todas as paredes, criando um ambiente único, ergui uma barreira de proteção. E transparente! Uma divisória de vidro entre o banheiro e o resto. O vaso sanitário também é transparente, comprei na Itália, é uma peça de design, e custou uma grana firme. As convidadas logo percebem que ficar por lá, toda a noite, significa em algum momento ter que mijar ou cagar à vista do lindinho aqui. Tudo para evitar meus improváveis, mas não impossíveis impulsos pelo padrão estabelecido, e também os constrangimentos no dia seguinte, quando elas esperam um “-bom dia!” cheio de ternura e eu já estou pensando quem vou comer da próxima vez. Depois de gozar, o momento de retomar o controle. Não deixa de ser engraçado, tanto tempo aprendendo como levá-las para a cama e para quê ? Agora, o importante é que elas saiam depressa! Por mais fantástica que tenha sido a transa lá está o vaso sanitário, imponente, no centro das atenções. Elas podiam ignorá-lo algum tempo, mas não o tempo todo. Eu não pedia que ficassem, e nem elas queriam. ”Ei, você pode chamar um táxi, por favor, tenho que acordar muito cedo amanhã?” Isso não impediu que alguns romances durassem meses, mas sempre com a cama inteira para mim no fim da noite. Eu não tinha contado que a estratégia se mostrou cem porcento confiável apenas com mulheres de trinta anos ou mais. Logo a primeira ninfetinha que levei para casa, não só usou o vaso transparente como ainda perguntou se eu não queria chegar mais perto para olhar. “Eu também tenho um fetiche por essas coisas”, disse. Eu nem respondi. Outras duas confirmaram a tese , e agora, se têm menos de vinte e cinco, levo-as para um motel. Então o que estava em questão era outra coisa, eu só não sabia o quê. Estávamos nos ferindo, mesmo assim continuei.
“Fracasso é não querer viver numa mentira? Para que almejar relações duráveis se a química da paixão dura dois, três anos no máximo? O que você chama de meu fracasso é a vitória sobre as convenções. Vitória duramente conquistada. E não pense que nunca apareceu ninguém capaz de bagunçar o meu esquema. Neste exato momento tem uma garota que... ”
“Você é patético. Quando a Carol te abandonou, ficou um tempão sem transar porque, eu me lembro bem dessas palavras, “Só quero fazer com ela”. Sabe por que você foge dos relacionamentos mais sérios? No fundo você continua aquele moleque abobalhado, que não via que elas queriam namorar você, porque seu medo da rejeição era maior. Tudo que você fez foi transferir suas inseguranças para depois do sexo. Você continua com quinze anos.”
Essa não era a sua voz, ele estava falando qualquer coisa para ganhar a discussão, mas mesmo assim eu fiquei puto da vida. Porque ele tinha conseguido. Aquela era uma boa descrição minha.
“Admito que fiquei sem rumo. Porém, escute bem, nessa armadilha não caio mais. Não vou casar, ter filhos, família, netos. Não quero saber das coisas boas que isso traz. Aposto que para cada uma boa tem dez ruins. Só uma pergunta: o que você entende sobre ser rejeitado por uma garota? Você sabia que todas as outras pessoas do universo têm medo de tomar um “NÃO” como resposta a uma investida? ”
Nem respondeu, olhava com atenção para o copo como se fosse emergir dali o monstro do Lago Ness.
Pedi a conta.

NO DIA DA MINHA MORTE




(1ª PARTE)

Sempre esperei
a visita da morte ao meu quarto.
Como no cinema, a vi
de vestes brancas e bonita.
Outras vezes, ou foram as mesmas ?
Cadavérica e sombria.

Quase posso imaginar
a visita da morte ao meu peito.
Chegará numa indiscreta hora
entrará por uma fresta
sem respeitar meus segredos.

Sigo esquivando
da visita da morte ao meu medo.
Não falará meu nome.
Mas essa intrusa não se engana.


(2ª PARTE)

Penso no dia da minha morte
e não imagino as inevitáveis dores dos que me amam.
Sei que existirão, assim como as lágrimas sinceras
dos amigos lembrando dos dias de festa
de como fui bom filho, pai, marido
que trabalhei por toda a vida e como era querido.

Não o faço.
Afinal hoje é o dia da minha morte
e tenho outras preocupações.
A que horas serei recebido
pelos que decidirão meu futuro ?
Que currículo devo apresentar ?
Contas de que devo prestar ?

Os versinhos que meu pai dizia
retumbam constantes:
“Dizemos o que pensamos
pensamos o que dizemos
mas o que nos tornamos
é apenas pelo que fazemos”.

Penso no dia da minha morte
e não me importo se estou bem vestido ou sereno.
Mas há palavras que ainda precisavam ser ditas
e que nunca serão.
Os toques e beijos que precisavam ser dados
e que nunca serão.
Sorrisos e abraços,
e que nunca serão.

Algumas de minhas omissões
serão, agora, eternizadas.
Mentiras se tornarão verdades
com o meu simples desaparecimento.

Penso no dia da minha morte
e não decido que palavras usar.
Se demonstro tristeza com a partida
ou júbilo por chegar.