sábado, 29 de setembro de 2012

VULNERÁVEL




O terror em dormir é estar à mercê. 

Do toque íntimo, do carinho indesejável. 

Por isso ela ansiava tanto pela ausência dele. 

Por isso ela prezava tanto a casa vazia. 
Nesse horror vivia Moy, a gatinha.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

MAS MEU PROBLEMA É DE SER!


The Knight, Death and The Devil (Durer 1451-1528)



Não sei bem se o mais me afeta é a decadência da carne, ou o esfriamento do espírito, daquela força vital que me incendiava todas as manhãs e me impulsionava para o dia.
O dia! Como sempre ansiei pelo dia e seus ares! Eu era a primeira a acordar e colocar a vida da casa e da família em movimento. Agora, tomada por essas dores intermitentes, por resfriados persistentes, por visitas aos doutores cada vez menos espaçadas, o dia não me apraz.
À noite ainda é pior. Se já não há ímpeto na luz, é nas trevas que pululam os monstros, que me habitam as feras. Criaturas que destacam o pior em mim, as mais íntimas fraquezas, aquelas que aprendia a conviver mas sem aceitá-las totalmente, que isso já seria uma derrota inadmissível. 
Meu marido diz que estou doente, que preciso me cuidar. Ele quer mesmo é que eu tome antidepressivos, pensa que a química vai resolver tudo. Mas meu problema é de ser!
Em minha cabeça, maus pensamentos correm em legião, como os demônios, aqueles mesmos demônios que povoaram meu discurso como elemento para capturar a atenção da plateia. Só que agora são  reais.
Vivo tempos perturbadores.


DAQUI





Sábado, oito horas
no sinal fechado
um mar verde acinzentado:
São teus olhos revoltos.
Pelo rádio, uma sonata de Brahms
em cada nota, cada acorde
está o amor à Clara.
Uma frase escrita no pára-choque de um caminhão
não traz graça mas faz sentido:
“Não me siga, estou perdido”
Levada pelo vento, a areia no asfalto,
lembra um balé mal dançado,
uma nuvem de partículas
que se desfaz a cada instante.
A chuva engrossa.
Umas poucas pessoas correm pelo calçadão.
Eu, mesmo indo trabalhar
não as invejo.
Quero fugir daqui.
Mas é impossível.
O aqui sou eu.

 

terça-feira, 25 de setembro de 2012

ALGUMAS VEZES



Menti algumas vezes,
para que alguma verdade sobrevivesse.

Gritei algumas vezes,
até que o silêncio me alcançasse.

Corri algumas vezes,
quando mais precisei descansar.

E odiei algumas vezes,
para que o amor pudesse, finalmente,  triunfar.

domingo, 23 de setembro de 2012

COMÉDIA (ORA PRO NOBIS)


Com algumas das maravilhosas 
gravuras de Gustave Doré 
para a Divina Comédia, de Dante Alighieri
(no total ele produziu 136 ilustrações 
trabalhando de 1857 a 1868)



I

Sombras irracionáveis me acompanham
vozes se repetem insistentes
idéias que por vezes não respondem
sonhos que se escondem ou que mentem.

O corpo depressa envelhece
as dúvidas que eu tinha encolheram
o medo de morrer é tão concreto
que fugas não planejadas reconheço.

Nossas vidas decoradas
com cores roubadas
fitas partidas
e enfeites quebrados.

Nossas vidas divididas
essas vidas incompletas
que desandam todo dia
simplesmente acontecem.

E como bicho empalhado em museu
de olhos vítreos e rechaçada beleza,
reviso meus planos fracassados
abandono o afã de ter certezas.


II

Porque não há no mundo
homem ou mulher que mereçam o céu,
que os anjos vivem sós e sofrem
pela sua solidão, e pela nossa.

No peito, agora apequenado,
ar rareia, ar rareia.
Não bombeia, o sangue não bombeia.

Mas não te assustes, parceiro,
Nem tudo que dói é o fim.
às vezes é só medo.


III

Cachorro louco ! Cachorro louco!
Chamam por mim, meu pai,
querem que eu saia de casa,
querem que eu fuja de lá.
Devo conhecer muitos nomes
de noites e de invernos.
Cachorro louco ! Cachorro louco!
São teus filhos me chamando.
Os círculos se abrindo,
camadas se sobrepondo.
O Florentino sabia!
O Florentino sabia!
Que a ordem não muda nada
os olhos fechados vêem,
a boca fechada fala.
No meio, no meio dessa vida
fui buscar um refúgio
não encontrei outra coisa
senão cansaço e lamento.


IV

Águas limpas  não bastam
esse rio é tão barrento.
Como esgotos despejados,
com palavras derramadas.

Carregos imensos fardos
mal consigo sustentá-los.
No caminho há uma poça
e não posso desviar.

Com as mãos imundas
e o coração manchado
procuro onde me lavar.
Tanta coisa aconteceu
que águas limpas não bastam.
Não haverá o que me livre
sujo estarei até o final.




V

Como um corpo que cai
e lança gozos às estrelas
me renovo nesta senda,
caminho que agora findo.
Aos que seguiram esses cantos
na crença tola
de que a recompensa é a própria busca
não me compadeço.
Por cantar meu tormento
tampouco me desculpo.
Renego a virtude virgem de propósito,
mas peço aos deuses que tenham paciência,
posto que a imperfeição é condição humana
que não se cura com fé ou inteligência.




sexta-feira, 21 de setembro de 2012

ÁRVORE URBANA







Árvore urbana que chora
lágrimas de cimento e fuligem
que derrama fluidos secos,
invisíveis,
involucráveis plasmas
das almas dessas ruas
e desta cidade.

Árvore urbana que transborda
águas de outros usos
que chegam cheias, imundas
e se filtram nos seus canais vitais.

Árvore urbana que envelhece
sem respeito ou prece
querendo vento fresco
sem voz, sem eco.

Árvore urbana que não sensibiliza
nenhuma ONG ou ecologista.
Pode ser furada,
cortada
serrada
derrubada
queimada
arrancada
suprimida.

Árvore urbana que destina
seus últimos dias ao menino
que sem quintal no edifício
faz da sua tímida sombra, abrigo.

Árvore urbana, enfim agonizas
e não tenho mensagem otimista.
Pior, vejo me como a ti,
criatura solitária e esquecida.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O AMOR NÃO É FRAÇÃO


A razão é, por definição, algo que relativiza. Razão é ponderação, é colocar em termos aquilo que era inteiro, indivisível. É por isso que, na matemática, usamos razão como sinônimo de fração.
O amor não é fração, o amor não divide. Não é número racional, sequer é real! Imaginário, então? Complexo, como o número que leva esse nome? Ah, isso sim! Mas quem o conhece sabe o quanto ele pode fazer sentido mesmo que os demais torçam o nariz.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

MEUS ESPINHOS SÃO AS LEMBRANÇAS




Eu estava me tornando adolescente. E além da típica dureza entre as pernas, eu tinha que conviver com a dureza de grana. Na semana anterior eu tinha sido convidado, pela primeira vez, para uma festa de quinze anos e não poderia ir porque não tinha dinheiro para comprar uma roupa adequada. Naquele dia, acordei aborrecido, passei o dia lançando farpas na escola e agora tinha chegado a hora da minha mãe receber a parte dela. Enquanto fazia o dever de casa, comecei a praguejar em voz alta, reclamar do que não podia ter, que tinha que estudar mais do que os outros (o que não era verdade), essas coisas. Esbravejava a esmo, e como ela não reagia, resolvi ser cruel. Comecei a dizer que preferia ser filho do meu tio Augusto, e ser como meus primos que tinham tanto e eram tão mais do que eu. Eu sabia que minha mãe escutava, enquanto acabava de lavar os pratos do jantar. Quando terminou de arrumar a cozinha, se aproximou e sentou num banco baixinho, ao lado da mesa na qual eu estava simulando fazer o dever de casa. Não sei se tive medo de apanhar, mas fui minguando até que parei. Mas ao invés de falar das dificuldades financeiras da família e de como ela não podia contar com meu pai para ajudá-la (na verdade essas coisas eram equivalentes), ela começou a falar do seu irmão mais velho e de como ele roubou meu avô nos negócios; da sua obsessão em ganhar dinheiro; dos casos que minha tia mantinha fora do casamento e como ela sempre dava um jeito do tio descobrir; de como meus primos eram infelizes nas suas camisas floridas de surfwear, das frustrações que não podiam administrar e tentavam inutilmente compensar consumindo. E o pior: de como todos, que aparentavam tanta felicidade, quando estavam à sós, em casa, nem se falavam. “-Li uma vez em algum lugar, deve ter sido numa revista, que se você vir um mar de rosas, não esqueça que logo abaixo da superfície há um oceano inteiro de espinhos .”
A única revista que ela lia era Seleções do Reader’s Digest. Histórias edificantes cheia de bons exemplos. Meu pai e meu irmão riam quando ela evocava algum pensamento extraído de lá, mas eu não. Já sentia culpa bastante só por desprezar tudo o que ela prezava, mesmo que em silêncio.
Se o objetivo dela era me consolar exibindo as fraquezas da família, o tiro saiu pela culatra. Se meus primos consumiam porque eram infelizes, eu também era! Mas não consumia. Minha camisa mais nova tinha seis meses. Além do mais, ela e papai não se entendiam tão bem assim para que isso me servisse de compensação. O que ela conseguiu foi destruir minha ilusão de família perfeita.
No dia seguinte, meu pai me chamou. Tinha escutado a conversa. “Quero fazer um ou dois comentários”. Ele ficava sério quando ia discordar de minha mãe, precisava se concentrar para contrabalançar sua falta de jeito com as palavras. “-Sua mãe vê as coisas só pelo lado que convém a ela. Pelo que eu sei, o único amante que sua tia teve foi um amigo do seu tio e ela pediu a separação para viver com ele. O Augusto é que implorou para que ela ficasse, principalmente porque seus primos eram pequenos. Sua tia acabou cedendo. E ele também já aprontou as dele, com a secretária e até com clientes. Seus primos são infelizes ou felizes como qualquer um, nem mais nem menos. Ninguém é o tempo todo nenhuma das duas coisas. De tudo o que sua mãe disse, o único fato verdadeiro foi o seu tio ter passado a perna no seu avô. Aproveitou que o velho estava adoentado e praticamente o expulsou dos negócios.”
Em seguida quase estragou tudo: “O seu avô, antes de ficar doente me chamou para contar que estava pensando passar a firma para mim”. Isso era o mais completo absurdo. Mais de uma vez escutei vovô falar da incapacidade de meu pai em administrar qualquer negócio.
Mesmo assim, dei-lhe um abraço. Por ter resgatado meu direito à inveja!
Meus espinhos são as lembranças (talvez os de todo mundo).

domingo, 16 de setembro de 2012

O PESO





Enquanto o filho dava voltas no pangaré da pracinha ela de repente se viu admirando os bagos de um potro e pensando que aquilo deveria ter um peso peculiar. Não se  envergonhou porque sabia que os homens que alugavam as charretes e os demais cavalos não poderiam saber (sequer imaginar) o que passava pela sua cabeça. Imaginou-se manipulando aquelas quase esferas, sentindo a consistência dos tendões e músculos, olhando de pertinho aquelas veias, acariciando os pelos curtos e secos. E o falo, é claro.
Ela sempre permitiu que sua mente a levasse  aos lugares que, em sua vida real, jamais iria. Em seus pensamentos não haviam restrições de ordem moral ou ética. Era livre e feliz assim. No restante do tempo era aquilo que todos nós somos para os outros.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

ERA TARDE DEMAIS. ATÉ PARA SABER A VERDADE



Era uma mulher bonita, bem sucedida na carreira, divorciada, sem filhos. Tinha sido casada durante cinco anos com um professor da mesma área. Colegas de turma, casaram-se logo que se formaram. Contou sobre o fim do seu casamento numa das raras vezes em que esteve triste, num daqueles dias em que, sobre nós, o passado se abate de uma única vez. Como em tantos relacionamentos, o dela foi perdendo o viço, e numa tarde, durante uma viagem do marido à um Congresso, ela sucumbiu às investidas de um jornalista famoso que a entrevistara para a televisão, sobre o plano Sarney, eu acho. Foram a um motel, e na saída, quando a gana de se sentir desejada outra vez já tinha se transmutado em culpa, a recepcionista entrega-lhe dois bombons em embalagem dourada. Iguais àqueles que seu marido lhe trazia todas as quartas à noite, quando voltava do futebol com os amigos, dizia que eram do restaurante onde o grupo jantava depois. E que ela nunca encontrou em loja alguma. Mesmo tamanho, peso, mesma embalagem dourada, sem identificação. Pequenos detalhes surgem na memória, telefonemas às escondidas, a roupa do futebol suada de menos, mesmo nos dias quentíssimos. O amante de uma tarde pergunta se está tudo bem, e ela consegue disfarçar ”É claro”, mas só quer desaparecer. Conseguiria perdoar as traições do marido, mas não consegue entender o motivo dele em levar-lhe os bombons, todas as semanas. Será que queria inconscientemente ser descoberto? Será que era para contar vantagem aos amigos? Ou ele se excitava, vendo-lhe a cara de inocência, agradecendo com um beijinho estalado nos lábios? Na manhã seguinte, telefonou ao motel e pediu o nome do fornecedor dos tais bombons, inventou uma mentira, que trabalhava numa empresa e estavam levantando custos para brindes de fim de ano. Conseguiu o número e encomendou várias caixas. Enquanto isso fingiu, e só ela sabia o que era fazer isso com o nojo que trazia nas entranhas. Dias depois, o marido voltou de viagem, exatamente numa quarta-feira. Pelo telefone, ela disse que estava numa reunião na Reitoria, que só ia para casa bem tarde, “-Claro que você pode jogar futebol”. Quando ele abriu a porta à noite, com os dois bombons dourados nas mãos, viu milhares deles cobrindo o piso, os móveis, a cama. Lotando a geladeira, os armários, a banheira. Ela tinha se mudado, e nunca mais falou com ele. “Acabou e pronto.” falou a todos que a procuraram. Fez uma longa viagem, mas antes, seduziu o arquirival de seu marido no Conselho Universitário. Humilhado, o agora ex marido acabou deixando a Universidade,  "O canalha se mudou para o Rio Grande do Sul”. 
Meses depois, almoçando com amigas, ela recebe os tais bombons na saída de um restaurante. Seu corpo gela, o suor escorre por suas costas, as pernas tremem. As certezas evaporaram como chuva de verão no asfalto fumegante.
 Era tarde demais. Até para saber a verdade.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

PODE UMA FAGULHA INCENDIAR TODA A FLORESTA?


(Não é necessário mas talvez seja melhor ler este antes)



Pior do que esquecer é lembrar.
Há semanas não saio. Da última vez que fui à rua, fiquei por horas esperando um sinal fechar. Alguém percebeu e um guarda acabou vindo. Ligaram para minha mãe e meu pai soube que ela estava me ajudando escondida dele. Sofro também por eles, por tudo o que já passaram. Não mereciam mais essa tristeza em suas vidas tão pesadas.
Ah! Mas se ao menos pudesse ver diferentes pores-do-sol, as nuances de suas cores, que são como as digitais dos dias! E se de manhã pudesse acordar as crianças com beijocas, ou tocar o corpo de meu marido e vê-lo espreguiçar-se num misto de sonolência e excitação. Sim, é por isso que as pessoas se repetem! E aguentam, e se escondem na própria vida. Pelos instantes singulares que valem a monotonia dos demais. O filho que dá os primeiros passos, um elogio por um trabalho bem feito, o abraço naqueles que  encontramos depois de tanto tempo.
Há pouco, descobri que posso ler de novo, sem sofrimento. Não qualquer coisa, mas poesia, poemas curtos de duas páginas no máximo, sem finais arrebatadores, mas com as palavras certas, que não se importam se já as conhecemos. Tenho conseguido alento nas dores dos outros. Há poetas destemidos, que aprisionam seus piores tormentos em versos e os exibem à visitação pública.

                                      Tiger, tiger, burning bright
In the forest of the night,
What immortal hand or eye
Could Frame thy fearful symmetry?

Willian Blake

Sinto o barulho dos automóveis diminuir, deve ser tarde. Estou exausta de tanta filosofia barata e desta luta perdida na sua própria origem.
Mas e essa mosca? Essa mosca nunca esteve aí! Será só um delírio? Não seria a primeira vez que me empolgo em vão. Melhor esperar. Ansiosamente esperar que o nascer do dia seja meu renascer.
A esperança embala mesmo os corações mais secos. Amanhã algo terá mudado ? Pode uma fagulha incendiar toda a floresta?
Pior do que esquecer é lembrar.


Trad. ( Tigre, Tigre !  Brilhante chama / Nas florestas da noite clama, / Que olho ou mão imortal poderia / Pintar-te a temível simetria ? )

terça-feira, 11 de setembro de 2012

PROMESSA





Em 2001 inscrevi três poesias em um concurso e, como as considerava espetaculares, fiquei bastante frustado, confesso, quando o resultado saiu e apenas uma delas foi classificada. E mesmo assim em vigésimo lugar!

Esta semana, tive um lampejo do que seria o tal do inconsciente coletivo quando lendo o excelente blog avidanumagoa, do meu amigo Evandro, encontro num dos seus belíssimos versos a mesma ideia contida nesses meus quase esquecidos versos. Para quem quiser brincar de procurar um arquétipo poético citado é só clicar: soneto-ingles-1



Existem duas maneiras de não cumprir uma promessa:
A primeira é negá-la,
executar seu oposto. Encerrá-la.
A segunda, é adiar seu cumprimento
mas renová-la.
Como fazem tão bem os políticos
e os amantes.

Alguém disse que a esperança é uma espécie de felicidade.
Vou mais além:
A esperança é a única forma de felicidade.

Ser feliz apenas com o que se tem?
Com aquilo que se é?
O homem sonha
e nesse sonho vive o que lhe foi negado.

Há algo mágico ou mesmo divino
em manter acesa a chama de uma promessa.
Nos fazemos eternos nas possibilidades não irrealizadas.

Uma promessa é só expectativa latente
mas que dificilmente se desfaz no ar.

Uma promessa é um quadro inacabado,
a obra prima em andamento.
O verso derradeiro
do soneto definitivo,
que falta,
mas dará
o perfeito fechamento.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

CONTENÇÃO




Não há espaço nesse mundo
de tantos não não não
para um poema calminho
que fale mais ao coração.

Não há espaço nesta casa
de tantas desavenças
para um descanso tranquilo
ou uma noite serena.

Não há espaço nesta mesa
tão cheia de ódios e carnes
para uma charla de amigos
ou um brinde que não nos cale.

Não há mais espaço em teus olhos
por onde eu possa entrar
para tocar teu desejo
e revelar meu amar.

domingo, 9 de setembro de 2012

EU NÃO ENTENDIA, NÃO ENTENDIA



1968
Pior do que esquecer é lembrar. Sempre, de todas as coisas. Ou achar que está lembrando, mesmo sabendo que pode ser só uma falha da tua cabeça, uma interrupção de milésimos de segundo no caminho da eletricidade pelo cérebro. Déjà vu. Todo mundo tem uma vez ou outra. Achar que já esteve em algum lugar ou que viveu certa situação, mas, eu, tenho isso o tempo todo!
Abro os olhos e logo na primeira imagem do dia, vem a sensação. A roupa empilhada num canto do quarto, a luz da manhã refletida no chão de madeira encerada. E também os sons da rua, os barulhos das buzinas e os vendedores ambulantes que passam anunciando bugigangas. Dos outros apartamentos, o cheiro de ovo frito e pão torrado que sobe do 203, as crianças brincando no andar de cima. Cada um de meus sentidos é cúmplice nessa zombaria à minha consciência.
Até este relato, estas malditas palavras vão se desenhando como se estivessem sendo copiadas de um outro caderno. Estou condenada ao familiar: rostos, vozes, lugares, fatos. Pode a memória ser mais rápida do que a capacidade de conhecer? O que acontece agora, é imediatamente identificado como uma velha lembrança. Ninguém pode calcular o que é perder a dimensão dos minutos que se expandem em horas ou comprimem-se em segundos, sem qualquer lógica. Num mesmo dia posso ser acometida desse desvio até uma centena de vezes. Que esse número está totalmente comprometido é obvio, porém, atualmente, o que pode ser confiável no meu pensamento?
Começou no verão. O mais quente de todos. As famílias ficavam na praia até tarde da noite. Ar refrigerado, quem pode ter? Só rico mesmo. Faltou cerveja nos mercados. De dia era o inferno. Mal saía do chuveiro e antes mesmo de terminar de me secar já estava suando. O calor paralisava até os bichos e era um sofrimento cada vez que se tinha que sair de casa. As escolas precisaram suspender as aulas de segunda época, e até morreu gente de insolação. Apesar disso, eu estava feliz. Ricardo tinha seis meses e Ruth cuidava dele com um zelo todo especial. Vivíamos com pouco, e Julio trabalhava para abrir seu comércio.
Logo que nos conhecemos, ficamos totalmente perdidos de amor. Nos víamos todos os dias, escondidos. Eu contei tudo de mim, meus medos, sonhos e ilusões. Ele disse que nunca pensara em se apaixonar desse jeito, que não acreditava em amor assim, desses de cinema. Falávamos sobre tudo, política, religião, futebol, filosofia, música, tudo era assunto. Haviam barreiras que pareciam intransponíveis mas de repente as coisas se resolveram. Neste caso, foi minha gravidez que precipitou tudo. Meus pais reagiram conforme foram programados: brigando e proibindo. Só me restou fugir de casa.
Numa dessas noites sufocantes, na qual vozes inquietas vinham dos outros apartamentos e havia muitos daqueles insetos que orbitam as luzes, aconteceu. Dei mamadeira para o pequeno, já que meu leite não dava mais conta sozinho e o coloquei para dormir. Preparei a banheira, não mais do que um palmo de água, para que Ruth brincasse enquanto eu arrumava o quarto. O combinado era conversarmos todo o tempo, assim eu saberia que ela estava bem. Comecei dobrando uns lençóis, guardando a roupa que havia passado à tarde. Falávamos de cores, de bichos, números. Joguei uns papéis na lixeira. Ué, a mamadeira para o bebê, eu já não fiz? Foi estranho quando cheguei com o leite e ele já estava dormindo. Foi terrível quando Julio urrou, com Ruth nos braços, desmaiada. Havia se afogado. Como? Eu não entendia. Berrando, ele ganhou a rua e numa patrulhinha estacionada na esquina, foram de sirene ligada, até o hospital. Fiquei aturdida, uma vizinha foi passar a noite conosco, eu não entendia, não entendia.
Três dias em terapia intensiva e ela voltou, sem seqüelas.
Eu já estava perdida, não soube nunca mais o que já tinha feito. Tudo parecia tão igual. Já havia trocado a fralda do pequeno? Trocava novamente. Não teve almoço no domingo porque na hora de servir, não tinha nada pronto mas eu achava que tinha preparado.
Fui internada uns dias depois. Meus pais apareceram e quiseram de volta o controle da minha vida. Houve uma discussão. Julio empurrou meu pai, que quebrou o braço quando caiu.
Tomei remédios, injeção, choque. Quando tive alta, tentei contornar as desavenças, porém além do braço de meu pai, algo mais também se engessara: o rancor. Eu reconhecia pequenas razões em todos, e todos brigavam comigo. Fingia que estava bem mas a cada dia eu endoidava mais. Contratamos uma babá, eu me enganei dizendo que era para ajudar. No fundo eu sabia que era para proteger as crianças de mim mesma.
Por fim, deixei minha família, fugi do meu amor, abandonei meus filhos. Que me tenham como uma desalmada. Não quero a piedade deles, e muito menos o medo. Não agüentaria sabê-los escutando dos coleguinhas de escola: “Sua mãe é pirada! Pirada! Pirada!”
 Ele disse que não compreendia. Queria saber se eu não estava feliz, se não o amava mais, o porquê? “E as crianças?” Eu tive um surto bem na hora e repeti coisas, cortei a conversa bem no meio (porque já sabia o que estava para ser dito ou pensava que já tinha sido). “Eu vou voltar" , tentava convencer a nós dois. Foi o pior dia da minha vida. E o tenho revivido seguidamente.
Mas tentei lutar. O primeiro médico me encheu de remédios fortes que alteraram meu humor. Não resolveu. Fui ver um psicólogo, doze seções e a conclusão: tudo era… psicológico, não passava de uma invenção do meu sub-qualquer-coisa para fugir das decisões, disse. “Você se agarra ao passado. Enquanto continua sublimando as possibilidades de renovação, sua vida mantém-se paralisada. Por que não trilhar novos caminhos? Vamos descobrir juntos”. Difícil foi escutar esse monte de bobagens e sair de lá sem trilhar um novo caminho na cara dele. Última tentativa, desta vez um especialista, um neurologista cheio de títulos. Confesso que me animei tais eram as maravilhas que se diziam do tal PhD, mas depois de uns vinte exames que me viraram do avesso, queria abrir minha cabeça, separar umas partes que podiam estar pressionando a região responsável pela percepção do tempo. Podiam, porque “os exames não são sensíveis a esses detalhes”. Sem outra saída, sugeriu uma intervenção, praticamente sem riscos. Não voltei mais.

Saí do consultório e fui seguindo pessoas quaisquer, tentando burlar minha condição, desviando do caminho habitual, entrando em ruas desconhecidas. Quando dei por mim, “outra vez aqui?”.
Concentrei-me em evitar que os outros notassem minha falta de espanto com os grandes fatos, e também com as pequenas coisas do dia a dia.
Tive que aprender a controlar o impulso de sorrir, de levantar a sobrancelha num cumprimento rápido. Como, agora, sei que me confundo, nego a todos sem distinção. Com isso, criei mal entendidos com pessoas das quais quis esconder meu estado. Mas não tive outra escolha depois de quase ser violentada por um rapaz que reconheci como um ex-colega de escola. É humilhante pensar nele rindo da maluca que ouviu sobre como nos divertíamos nas aulas de francês de Madame Lavigne e todo o resto.
Hábitos simples como, por exemplo, ouvir rádio, se tornaram impossíveis. É que as informações chegavam e ficavam batendo dentro da cabeça, ecoando cada vez mais alto, doendo e continuavam chegando, chegando.
Comecei a escrever tudo como se pudesse confiar na cronologia dos escritos, mas isso não funcionou. Havia o problema de selecionar o que escrever, mas, principalmente, e só descobri depois, de ter a certeza de já haver lido, e eu sempre tinha! Criei um sistema de registro com as datas de escritura e leituras programadas. Não era realmente prático, mas estava lutando para manter o controle. Tornou-se uma obsessão registrar, e registrar a que horas eu acessava os registros. Exausta, abandonei essa logística e passei a me concentrar em fatos chaves. Apenas o essencial à sobrevivência, sem detalhes que confundam.
Minha mãe tem me ajudado, escondida de meu pai. Moro num quarto e sala. Deixei apenas o colchão e a geladeira, o fogão mandei tirar com medo do gás. Os porteiros me olham esquisito.
Tento dormir durante o dia, quando as ruas estão apinhadas de gente. Saio bem tarde para fazer compras num mercadinho. Algumas frutas, chocolates, papel higiênico.
Caminho pela orla até que o cansaço esvazie qualquer possibilidade de pensar, e quando o calor é demais, mergulho no Arpoador. Sempre gostei do ruído das ondas, ao mesmo tempo ameaçador e repetitivamente reconfortante. Sua escura imensidão ainda me emociona e acabo chorando com pena de mim mesma, de raiva da minha loucura, de ter perdido tudo.
Nem sei se tenho esperanças, no fundo espero por um milagre, quem sabe seja só um pesadelo, e por acreditar nisso, não me jogo pela janela ou deixo que as águas me arrastem.
Sim, quero minha vida de volta, mas também surpreendo-me com a dúvida: Qual vida? E para quê? Para ser como essa gente que vai dormir cedo todo dia, que amanhã é quarta-feira e dia de muito trabalho? E viver infeliz porque as contas não deixam juntar algum dinheiro, e quando se consegue é para, em seguida, reclamar o quanto isso custou? E se lamentar do tempo, que passa rápido demais, e ainda assim só sair de casa de relógio, medindo, medindo, medindo. Aí, prefiro essa estranha consciência de ser sempre a mesma, imutável e repetida à época em que me considerava uma normal e saudável dona de casa, mas vivia escutando os mesmos discos, e mais de uma vez assisti a filmes de suspense que já sabia o final!
Talvez fiquem melhor sem mim, sem a mãe louca, sem a tristeza da esposa enferma e a culpa quando chegar a hora de ter uma amante.
Pior do que esquecer é lembrar.