terça-feira, 14 de agosto de 2012

CORTÁZAR E O BEIJO



Julio Cortázar é um dos mais importantes escritores argentinos, quiçá do mundo inteiro.
Rayuela (O jogo da amarelinha, em português) é considerado sua obra prima. O livro, de 1963 pode ser lido de duas maneiras: de forma linear do capítulo 1 ao 56. Assim a história tem um começo, meio e fim. Ou então começando no capítulo 73 e seguindo a ordem sugerida pelo autor (no total são 155 capítulos razoavelmente curtos), daí o nome do romance. Hipertexto dos bons, quando essa palavra ainda nem existia. Essa leitura traz um outro livro: misterioso, desafiador, denso, complexo.

A obra carrega diversos tipos de interpretações, já foi dissecada por estudiosos e virou teses de doutorado pelo mundo afora.




Certa vez ele disse: “O romance não tem leis, a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor.” Com Cortázar esse risco é inexistente. Pelo contrário, o perigo é perder o sono com as imagens que  são apresentadas, com a construção das frases, com a escolha das palavras.


Como não se impactar com a mais completa e arrebatadora, descrição de um beijo, que compõe o capítulo 7? 


"Toco a sua boca com um dedo, toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se, pela primeira vez, a sua boca entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade, eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que, por um acaso, que não procuro compreender, coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que minha mão desenha em você. Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõe-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem, com um perfume antigo e um grande silêncio. Então as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se estivéssemos com a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água."


Nem sei se é o meu favorito porque há tantos maravilhosos! Em particular sou fã do primeiro parágrafo do capítulo 73:
"Sim, mas quem nos curará do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, ao anoitecer, pela rue de la Huchette, saindo dos portais carcomidos, dos pequenos vestíbulos, do fogo sem imagem que lambe as pedras e ataca os vãos das portas, como faremos para nos lavar da sua queimadura doce que persiste, que insiste em durar, aliada ao tempo e à recordação, às substâncias pegajosas que nos retêm deste lado, e que nos queimará docemente até nos calcinar? Então é melhor compactuar com os gatos e os musgos, travar amizade imediata com as porteiras de vozes roucas, com as criaturas pálidas e sofredoras que aparecem às janelas, brincando com um ramo seco. Ardendo assim, sem tréguas, suportando a queimadura central que avança como o amadurecimento paulatino do fruto, ser o pulso de uma fogueira neste emaranhado de pedra interminável, caminhar pelas noites da nossa vida com a obediência do sangue no seu cego circuito."



RECOMENDO FORTEMENTE A LEITURA.

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