domingo, 1 de julho de 2012

UM VALOR ASTRONÔMICO



Papai era uma figura anacrônica no que dizia respeito a seus vícios. Não era mulherengo ainda que, numa certa época, mamãe tivesse desconfiado de que ele estivesse arrastando uma asa para cima da vizinha do apartamento 101. Tampouco era um beberrão.  Em casa, nos fins de semana, exagerava uma vez ou outra. Mas no dia a dia, no botequim onde os aposentados do bairro batiam ponto, tomava um único conhaque, mais pelo hábito de consumir do que por vontade. Também não era de jogar. Mas excitava-o  a movimentação que existe em torno dos jogos. Participou de um grupo que organizava apostas na loteria esportiva. Reuniam-se duas noites por semana. Numa discutiam e formulavam os jogos enquanto na outra, preenchiam os volantes. Uma intrincada logística recolhia o dinheiro dos cotistas, fazia as apostas e distribuía cópias a todos. Aos domingos telefonavam-se várias vezes discutindo os resultados parciais das partidas e fazendo planos, caso ganhassem. Este ciclo durou apenas tempo suficiente para que ele encontrasse um hobby mais oneroso.
Um dia, depois de andar misterioso por semanas, chegou em casa e anunciou "comprei um cavalo". Até meu irmão que vivia naquela dimensão onde quanto mais mirabolante um plano, melhor ele é, ficou alarmado. Era um absurdo total e sem precedentes. Nem carro nos tínhamos! Mamãe, exausta por antecipação, trancou-se no banheiro. Mas papai tinha pensado em tudo. "Só vamos arcar com a hospedagem, a alimentação e o tratador. E mesmo assim, apenas no início. Nem veterinário vamos precisar. É um cavalo com uma saúde de touro! E a medida que os resultados nas corridas começarem a aparecer o investimento vai se sustentar e ainda dar lucro." Ele ainda não sabia que um cavalo vencedor precisa, além de  pré disposição genética, de um treinador, evidentemente remunerado de acordo com sua experiência e dos resultados que obtém. E nem que jóqueis não montam de graça, ou pelo menos os bons.
Nosso cavalo estreou no sábado seguinte. Fomos todos assistir, inclusive mamãe, já devidamente envolvida pela conversa do papai. Ruth me acompanhou, só para dar uma força. As novidades de papai, ela sabia, sempre me deixavam entre a derrota e a vergonha.
O cavalo era um mestiço de quatro anos mas papai insistia que era um puríssimo manga larga. Dizer que ele tinha cara de cavalo não é redundância. Todo mundo sabe que cavalo é um dos animais mais estúpidos que existem. E Enfermo (esse nome seria um sinal ?)   não deixava ninguém esquecer disso. Não tinha porte nem envergadura de cavalo de corrida.  Além disso, parecia o tempo todo alheio à realidade, talvez seu cérebro não funcionasse muito bem, mesmo para um cavalo.
A maior alegria do meu velho foi ver seu nome impresso no programa ao lado da palavra 'proprietário'. Ainda bem, porque a performance inaugural de Enfermo deve estar registrada como a mais pífia da história do Jóquei Clube. Depois de uma largada vacilante, uns trinta metros adiante, Enfermo foi diminuindo de velocidade até parar e começar a pastar num arbusto que ladeava a pista. O jóquei, que ficou completamente sem ação, era o filho do tratador, e havia sido seduzido por meu pai, é claro, pela oportunidade em fazer sua estréia também naquele páreo. As pessoas riam nas tribunas. Se meu pai ficou abalado, não demonstrou.  "Deixem que riam. Da próxima vez, seremos taxados de 'azarão' e vocês sabem quanto eles pagam quando um azarão vence ? Não ? Eu conto: um valor astronômico!" Seu Pedrão, o tratador, foi resgatar os dois enquanto pelos auto-falantes escutávamos uma piadinha feita pelo narrador oficial.
Um ano depois, quando o cavalo foi repassado para Seu Pedrão, em troca de salários atrasados, a tal vitória ainda não tinha acontecido. Nesse ínterim, Enfermo (afinal, esse nome não era casual) passou dois meses doente, sendo medicado apenas por Seu Pedrão, instruído pelos palpites de papai. Mas apesar dessas e outras trapalhadas, nunca vi papai apostar. O que o estimulava era estar ali conversando sobre algo estranho aos de sua origem e classe social. O importante era sentir-se aceito (ou apenas deixar-se enganar de que era) como se fosse um daqueles homens que usufruíam de suas paixões com um genuíno e hereditário direito. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário