sábado, 14 de julho de 2012

A MORTE E O BÓSON



Eles se olham. Têm plena consciência do absurdo que é estarem ali sentados, num banco da Praça Paris, trinta e poucos anos depois de terem morrido.
O mais velho se chama Paulo Vieira mas usa, desde a juventude, apenas o sobrenome. Ele se recorda, é claro, da morte do melhor amigo, acontecida seis meses antes da sua. Jorge vinha de um fim de semana em Petrópolis. Descia a serra quando, sem aviso, seu coração minguou. Só teve tempo de parar  o carro no acostamento e ligar o pisca-alerta. Já Vieira morreu depois que a polícia do exército invadiu o apartamento onde sua célula do partido se reunia. Quando os "gorilas" entraram ele tentou correr para os fundos e acabou tropeçando.  Bateu a cabeça na quina da mesinha de centro, base de ferro fundido, tampo de mármore. Pronto, apagou e não acordou mais. 
Até hoje. 
Estranhamente estão calmos apesar de tudo que lhes está acontecendo.
Jorge experimenta novamente seu corpo, torce a pele do braço, toca seu cabelo. Aspira saborosamente o ar gelado da tarde de outono  e sente cócegas no nariz. É ele quem diz: 
"Não sabia que mortos sonhavam. Estamos sonhando, não é?"
Vieira não quer dar uma resposta precipitada, ele sempre foi assim, de pensamentos largos e palavras miúdas. 
Jorge continua: "Não sei explicar mas lembro de tudo, mesmo o que veio depois."
Vieira também. Sabe que destino teve de cada um de seus companheiros de luta.  Sabe também que sua viúva (é tão diferente pensar na esposa desse jeito) se casou novamente. Porém, mesmo esse, não é um conhecimento sofrido, está mais para uma plácida onisciência.
De repente, como se nada tivesse acontecido ambos se esgotam. Da mesma forma que reapareceram, retornam ao não-existir. Nem têm tempo de deixar qualquer marca de sua nova passagem. 
Não se tratou de uma brincadeira de Deus. Bem, quer dizer, a culpa foi todinha do Bóson de Higgs, esse danado!

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