domingo, 23 de setembro de 2012

COMÉDIA (ORA PRO NOBIS)


Com algumas das maravilhosas 
gravuras de Gustave Doré 
para a Divina Comédia, de Dante Alighieri
(no total ele produziu 136 ilustrações 
trabalhando de 1857 a 1868)



I

Sombras irracionáveis me acompanham
vozes se repetem insistentes
idéias que por vezes não respondem
sonhos que se escondem ou que mentem.

O corpo depressa envelhece
as dúvidas que eu tinha encolheram
o medo de morrer é tão concreto
que fugas não planejadas reconheço.

Nossas vidas decoradas
com cores roubadas
fitas partidas
e enfeites quebrados.

Nossas vidas divididas
essas vidas incompletas
que desandam todo dia
simplesmente acontecem.

E como bicho empalhado em museu
de olhos vítreos e rechaçada beleza,
reviso meus planos fracassados
abandono o afã de ter certezas.


II

Porque não há no mundo
homem ou mulher que mereçam o céu,
que os anjos vivem sós e sofrem
pela sua solidão, e pela nossa.

No peito, agora apequenado,
ar rareia, ar rareia.
Não bombeia, o sangue não bombeia.

Mas não te assustes, parceiro,
Nem tudo que dói é o fim.
às vezes é só medo.


III

Cachorro louco ! Cachorro louco!
Chamam por mim, meu pai,
querem que eu saia de casa,
querem que eu fuja de lá.
Devo conhecer muitos nomes
de noites e de invernos.
Cachorro louco ! Cachorro louco!
São teus filhos me chamando.
Os círculos se abrindo,
camadas se sobrepondo.
O Florentino sabia!
O Florentino sabia!
Que a ordem não muda nada
os olhos fechados vêem,
a boca fechada fala.
No meio, no meio dessa vida
fui buscar um refúgio
não encontrei outra coisa
senão cansaço e lamento.


IV

Águas limpas  não bastam
esse rio é tão barrento.
Como esgotos despejados,
com palavras derramadas.

Carregos imensos fardos
mal consigo sustentá-los.
No caminho há uma poça
e não posso desviar.

Com as mãos imundas
e o coração manchado
procuro onde me lavar.
Tanta coisa aconteceu
que águas limpas não bastam.
Não haverá o que me livre
sujo estarei até o final.




V

Como um corpo que cai
e lança gozos às estrelas
me renovo nesta senda,
caminho que agora findo.
Aos que seguiram esses cantos
na crença tola
de que a recompensa é a própria busca
não me compadeço.
Por cantar meu tormento
tampouco me desculpo.
Renego a virtude virgem de propósito,
mas peço aos deuses que tenham paciência,
posto que a imperfeição é condição humana
que não se cura com fé ou inteligência.




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