domingo, 9 de setembro de 2012

EU NÃO ENTENDIA, NÃO ENTENDIA



1968
Pior do que esquecer é lembrar. Sempre, de todas as coisas. Ou achar que está lembrando, mesmo sabendo que pode ser só uma falha da tua cabeça, uma interrupção de milésimos de segundo no caminho da eletricidade pelo cérebro. Déjà vu. Todo mundo tem uma vez ou outra. Achar que já esteve em algum lugar ou que viveu certa situação, mas, eu, tenho isso o tempo todo!
Abro os olhos e logo na primeira imagem do dia, vem a sensação. A roupa empilhada num canto do quarto, a luz da manhã refletida no chão de madeira encerada. E também os sons da rua, os barulhos das buzinas e os vendedores ambulantes que passam anunciando bugigangas. Dos outros apartamentos, o cheiro de ovo frito e pão torrado que sobe do 203, as crianças brincando no andar de cima. Cada um de meus sentidos é cúmplice nessa zombaria à minha consciência.
Até este relato, estas malditas palavras vão se desenhando como se estivessem sendo copiadas de um outro caderno. Estou condenada ao familiar: rostos, vozes, lugares, fatos. Pode a memória ser mais rápida do que a capacidade de conhecer? O que acontece agora, é imediatamente identificado como uma velha lembrança. Ninguém pode calcular o que é perder a dimensão dos minutos que se expandem em horas ou comprimem-se em segundos, sem qualquer lógica. Num mesmo dia posso ser acometida desse desvio até uma centena de vezes. Que esse número está totalmente comprometido é obvio, porém, atualmente, o que pode ser confiável no meu pensamento?
Começou no verão. O mais quente de todos. As famílias ficavam na praia até tarde da noite. Ar refrigerado, quem pode ter? Só rico mesmo. Faltou cerveja nos mercados. De dia era o inferno. Mal saía do chuveiro e antes mesmo de terminar de me secar já estava suando. O calor paralisava até os bichos e era um sofrimento cada vez que se tinha que sair de casa. As escolas precisaram suspender as aulas de segunda época, e até morreu gente de insolação. Apesar disso, eu estava feliz. Ricardo tinha seis meses e Ruth cuidava dele com um zelo todo especial. Vivíamos com pouco, e Julio trabalhava para abrir seu comércio.
Logo que nos conhecemos, ficamos totalmente perdidos de amor. Nos víamos todos os dias, escondidos. Eu contei tudo de mim, meus medos, sonhos e ilusões. Ele disse que nunca pensara em se apaixonar desse jeito, que não acreditava em amor assim, desses de cinema. Falávamos sobre tudo, política, religião, futebol, filosofia, música, tudo era assunto. Haviam barreiras que pareciam intransponíveis mas de repente as coisas se resolveram. Neste caso, foi minha gravidez que precipitou tudo. Meus pais reagiram conforme foram programados: brigando e proibindo. Só me restou fugir de casa.
Numa dessas noites sufocantes, na qual vozes inquietas vinham dos outros apartamentos e havia muitos daqueles insetos que orbitam as luzes, aconteceu. Dei mamadeira para o pequeno, já que meu leite não dava mais conta sozinho e o coloquei para dormir. Preparei a banheira, não mais do que um palmo de água, para que Ruth brincasse enquanto eu arrumava o quarto. O combinado era conversarmos todo o tempo, assim eu saberia que ela estava bem. Comecei dobrando uns lençóis, guardando a roupa que havia passado à tarde. Falávamos de cores, de bichos, números. Joguei uns papéis na lixeira. Ué, a mamadeira para o bebê, eu já não fiz? Foi estranho quando cheguei com o leite e ele já estava dormindo. Foi terrível quando Julio urrou, com Ruth nos braços, desmaiada. Havia se afogado. Como? Eu não entendia. Berrando, ele ganhou a rua e numa patrulhinha estacionada na esquina, foram de sirene ligada, até o hospital. Fiquei aturdida, uma vizinha foi passar a noite conosco, eu não entendia, não entendia.
Três dias em terapia intensiva e ela voltou, sem seqüelas.
Eu já estava perdida, não soube nunca mais o que já tinha feito. Tudo parecia tão igual. Já havia trocado a fralda do pequeno? Trocava novamente. Não teve almoço no domingo porque na hora de servir, não tinha nada pronto mas eu achava que tinha preparado.
Fui internada uns dias depois. Meus pais apareceram e quiseram de volta o controle da minha vida. Houve uma discussão. Julio empurrou meu pai, que quebrou o braço quando caiu.
Tomei remédios, injeção, choque. Quando tive alta, tentei contornar as desavenças, porém além do braço de meu pai, algo mais também se engessara: o rancor. Eu reconhecia pequenas razões em todos, e todos brigavam comigo. Fingia que estava bem mas a cada dia eu endoidava mais. Contratamos uma babá, eu me enganei dizendo que era para ajudar. No fundo eu sabia que era para proteger as crianças de mim mesma.
Por fim, deixei minha família, fugi do meu amor, abandonei meus filhos. Que me tenham como uma desalmada. Não quero a piedade deles, e muito menos o medo. Não agüentaria sabê-los escutando dos coleguinhas de escola: “Sua mãe é pirada! Pirada! Pirada!”
 Ele disse que não compreendia. Queria saber se eu não estava feliz, se não o amava mais, o porquê? “E as crianças?” Eu tive um surto bem na hora e repeti coisas, cortei a conversa bem no meio (porque já sabia o que estava para ser dito ou pensava que já tinha sido). “Eu vou voltar" , tentava convencer a nós dois. Foi o pior dia da minha vida. E o tenho revivido seguidamente.
Mas tentei lutar. O primeiro médico me encheu de remédios fortes que alteraram meu humor. Não resolveu. Fui ver um psicólogo, doze seções e a conclusão: tudo era… psicológico, não passava de uma invenção do meu sub-qualquer-coisa para fugir das decisões, disse. “Você se agarra ao passado. Enquanto continua sublimando as possibilidades de renovação, sua vida mantém-se paralisada. Por que não trilhar novos caminhos? Vamos descobrir juntos”. Difícil foi escutar esse monte de bobagens e sair de lá sem trilhar um novo caminho na cara dele. Última tentativa, desta vez um especialista, um neurologista cheio de títulos. Confesso que me animei tais eram as maravilhas que se diziam do tal PhD, mas depois de uns vinte exames que me viraram do avesso, queria abrir minha cabeça, separar umas partes que podiam estar pressionando a região responsável pela percepção do tempo. Podiam, porque “os exames não são sensíveis a esses detalhes”. Sem outra saída, sugeriu uma intervenção, praticamente sem riscos. Não voltei mais.

Saí do consultório e fui seguindo pessoas quaisquer, tentando burlar minha condição, desviando do caminho habitual, entrando em ruas desconhecidas. Quando dei por mim, “outra vez aqui?”.
Concentrei-me em evitar que os outros notassem minha falta de espanto com os grandes fatos, e também com as pequenas coisas do dia a dia.
Tive que aprender a controlar o impulso de sorrir, de levantar a sobrancelha num cumprimento rápido. Como, agora, sei que me confundo, nego a todos sem distinção. Com isso, criei mal entendidos com pessoas das quais quis esconder meu estado. Mas não tive outra escolha depois de quase ser violentada por um rapaz que reconheci como um ex-colega de escola. É humilhante pensar nele rindo da maluca que ouviu sobre como nos divertíamos nas aulas de francês de Madame Lavigne e todo o resto.
Hábitos simples como, por exemplo, ouvir rádio, se tornaram impossíveis. É que as informações chegavam e ficavam batendo dentro da cabeça, ecoando cada vez mais alto, doendo e continuavam chegando, chegando.
Comecei a escrever tudo como se pudesse confiar na cronologia dos escritos, mas isso não funcionou. Havia o problema de selecionar o que escrever, mas, principalmente, e só descobri depois, de ter a certeza de já haver lido, e eu sempre tinha! Criei um sistema de registro com as datas de escritura e leituras programadas. Não era realmente prático, mas estava lutando para manter o controle. Tornou-se uma obsessão registrar, e registrar a que horas eu acessava os registros. Exausta, abandonei essa logística e passei a me concentrar em fatos chaves. Apenas o essencial à sobrevivência, sem detalhes que confundam.
Minha mãe tem me ajudado, escondida de meu pai. Moro num quarto e sala. Deixei apenas o colchão e a geladeira, o fogão mandei tirar com medo do gás. Os porteiros me olham esquisito.
Tento dormir durante o dia, quando as ruas estão apinhadas de gente. Saio bem tarde para fazer compras num mercadinho. Algumas frutas, chocolates, papel higiênico.
Caminho pela orla até que o cansaço esvazie qualquer possibilidade de pensar, e quando o calor é demais, mergulho no Arpoador. Sempre gostei do ruído das ondas, ao mesmo tempo ameaçador e repetitivamente reconfortante. Sua escura imensidão ainda me emociona e acabo chorando com pena de mim mesma, de raiva da minha loucura, de ter perdido tudo.
Nem sei se tenho esperanças, no fundo espero por um milagre, quem sabe seja só um pesadelo, e por acreditar nisso, não me jogo pela janela ou deixo que as águas me arrastem.
Sim, quero minha vida de volta, mas também surpreendo-me com a dúvida: Qual vida? E para quê? Para ser como essa gente que vai dormir cedo todo dia, que amanhã é quarta-feira e dia de muito trabalho? E viver infeliz porque as contas não deixam juntar algum dinheiro, e quando se consegue é para, em seguida, reclamar o quanto isso custou? E se lamentar do tempo, que passa rápido demais, e ainda assim só sair de casa de relógio, medindo, medindo, medindo. Aí, prefiro essa estranha consciência de ser sempre a mesma, imutável e repetida à época em que me considerava uma normal e saudável dona de casa, mas vivia escutando os mesmos discos, e mais de uma vez assisti a filmes de suspense que já sabia o final!
Talvez fiquem melhor sem mim, sem a mãe louca, sem a tristeza da esposa enferma e a culpa quando chegar a hora de ter uma amante.
Pior do que esquecer é lembrar.

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