segunda-feira, 25 de junho de 2012

OU COMO O AMOR QUE NUNCA ACABA



"A solidão como secreta soberania"
Célia Machado
Técnica Mista
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Minha mulher, que é psicóloga, diz que é na infância que construímos a base emocional que regerá nossas relações afetivas na vida adulta. Tentei provar que esta teoria estava errada. Tentei provar sendo feliz. Não logrei. Não considerei o incomensurável poder da vontade dos outros. 
Eu pensava “os outros são tão iguais, mesmas idéias, mesmos desejos, todos querendo comprar apartamentos em prédios com playground, carros com ar condicionado, passar férias na praia. Mas não eu. Minha vida não teria espaço para lugares-comuns, não deixaria que os acontecimentos me subjugassem. Eu me achava único e especial.

Só recentemente entendi que uma das coisas que tornam as pessoas mais iguais é que todas se acham diferentes das outras. 
Eu ia vencer. E vencer não era apenas ganhar dinheiro, eu ia realizar. Isso mesmo, realizar era o meu norte. Realizações, e o resto viria como consequência. Ah, eu também achava que a felicidade era a meta, mas aí li em algum lugar que a felicidade era o caminho. Não importa mais, porque agora sei que a felicidade é outra invenção. Como Deus. Ou como o amor que nunca acaba. 
Os psicólogos condicionam quase tudo que passamos ao que aconteceu na infância, é como se a vida adulta fosse só um destino. Meus antecedentes eram tão ruins nesse ponto que eu não podia aceitar que fosse assim. Mas olhar para trás é como cavar um buraco na areia da praia. Quando a água começa a brotar não importa quantos baldes se retire, sempre junta mais e mais, até que as paredes começam a ceder, a acumular no fundo, então, de repente, apesar de todo o esforço, tudo desmorona de uma vez.
Não conheci minha mãe. Ela morreu quando eu ainda era um bebê. A única fotografia em que aparecia era um quadrado dez por dez com cores desbotando e muitas pessoas. Olhei tanto que decorei quantas listras apareciam na calça que ela usava ou quantos talheres haviam sobre a mesa. Foi tirada num almoço na casa de um amigo do meu pai, semanas após eles se casarem. Os dois eram bonitos e pareciam felizes, o grupo posava para um brinde. Durante toda a nossa infância tampouco conheci quaisquer outros parentes por parte dela, avós, tios ou primos. Crer na sua existência era um ato de fé sustentado por aquele pedaço de papel. Num pesadelo recorrente eu perdia a foto e Dona Eufrásia, da casa em frente, se apresentava como minha mãe. Eu nunca tinha visto uma certidão de nascimento e quando vi a minha, pela primeira vez, com o seu nome e o meu, juntos num documento oficial, foi como presenciar uma aparição. Por um segundo, achei que lembrava do seu rosto e que ela era realmente bonita.
Em casa não se falava nela, nunca soube de que comida gostava, qual a sua cor favorita ou se ela torcia para algum time de futebol. Talvez eu tenha perguntado mais quando era bem pequeno mas a partir de um certo instante percebi, como todas as crianças fazem, que esse era um assunto a ser evitado. 
No primário, quando se aproximava o dia das mães e as professoras se empenhavam em criar presentinhos feitos de sucata, aventais de sacolas de supermercado ou porta guardanapos com rolos de papel higiênico, eu me protegia desviando a atenção do significado. Era como se fosse o dia do primo marciano. Eu fazia os trabalhos com o maior capricho, decorava com corações, colocava até seu nome mas não me deixava tocar abaixo da superfície. 
Mas sorria.
Numa apresentação, na quarta série, enquanto sorria e cantava musiquetas cheias de ternura, Dudu, um menino que tinha perdido a mãe num desastre, um ano antes, chorava desesperadamente no colo da professora. Na semana anterior ele teve dor de cabeça quase todos os dias, fez cocô na calça e rasgou um cartaz, com recortes de revistas, cheio de mães felizes e seus filhos limpinhos. Seu pai compareceu e as mães se acotovelaram para consolar o viúvo, que parecia muito bem. À mim eram dirigidos olhares divididos entre piedade, “coitadinho, este também não tem mãe”, e admiração pela minha capacidade de superar. Minha irmã, esperava, com olhos mareados, a hora da sua turma, no lugar reservado para minha mãe, o que não era totalmente inadequado. Quando voltamos para casa, ela deu um porta-panos-de-prato para a vovó e eu abandonei meu porta-magiclick junto aos papéis velhos que se entulhavam na parte de baixo da mesa de estudos.

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