1992
Ela, Águas de Março; eu, November
Rain. Ela, samba de raiz; eu, rock progressivo. Ela, letras do Aldir; eu,
do Peter Hammil. Ela, Drummond na cabeceira; eu, Rubem Fonseca. Ela, água sem
gás; eu, vinho, cerveja, vodca, e sei lá mais o quê. Ela, alegria; eu,
melancolia.
Mas funcionou. Desde o primeiro
instante, na aula de teoria literária quando compartilhamos a cópia de um texto
e acabamos encostamos as costas das mãos por acaso, um sorriso envergonhado de
ambas as partes que revelou ao invés de esconder. Depois, durante o intervalo,
dividindo um Egg-cheese-bacon-salada com
banana no trailer lanchonete. No fim do dia, uma cerveja no Bar do Natal.
Para o beijo foram mais três dias, mas nós já sabíamos. Funcionou daquele jeito
tão adolescente, de querer ficar junto o tempo todo, troca de confidências,
juras e temores. Conheci seus pais e ela os meus. Meu avô fez noventa anos e
prometeu que não morreria sem que lhe déssemos um bisneto. Não cumpriu. Também
não se cumpriram as promessas de nos amarmos para sempre e de não deixarmos
nada nos separar. Não houve um motivo, ou talvez tenham sido uns cem.
Concessões demais, vontades de menos, angustias isoladas, nada que possa ser
medido para poder ser perdoado. Ela viu antes, tão prática; eu quis consertar.
Ela disse não e foi embora; eu fiquei olhando para a porta. Em nossos planos eu
escreveria um dicionário, ela um romance. O dicionário nunca saiu, mas o
romance apareceu um ano e pouco depois: “Frialdade”. Na história, um casal
vivendo isolado numa casa na serra vê seu casamento ruir a medida que o inverno
mais rigoroso do século avança sobre a montanha. Num trecho, a esposa despreza
o hábito do marido em querer que ela ouça seus discos, leia seus romances
favoritos: “-Você não percebe como é ridícula sua pretensão em me educar. Os
romances de capa e espada que você devora são puro lixo e seus discos de rock
progressivo italiano são chatos e repetitivos. Como você.”
Não consegui acreditar quando li pela
primeira vez. Uma das minhas fixações musicais naquela época era exatamente
rock progressivo italiano. Nem para disfarçar e mudar para bolero ou twist. Eu
teria captado a mensagem do mesmo jeito. O livro termina na chegada da
primavera. A casa é posta à venda, os dois se separam. Escrever um livro com o
fim de deixar tudo para trás. Era o que eu deveria ter feito. A cada
vicissitude, escrever um livro.
Eu não disse que ela era prática?
Já se vão muitos anos.
Hoje, aproveito do circunstancial
regulamento das cinco mulheres para cada homem. Mas por mais que eu tenha
mudado meu modus operandi com relação
às mulheres, isso ainda pulsa.
Logo que Carol foi embora, desmoronei.
Não podia aceitar o fim. Fui até a casa dos pais dela, mas ela não estava lá.
No trabalho, disseram que ela tinha pedido transferência, não sabiam para onde.
Queria mais uma chance. Se pelo menos eu soubesse para onde mandar flores ?
Passava meu tempo imaginando o instante em que ela abriria a porta do
apartamento e se diria arrependida. Comecei a beber até tarde todos os dias, e
a perder o horário do trabalho no dia seguinte. Chorava no meio da rua quando
via uma demonstração de carinho
entre namorados. Seu pai apareceu um dia e pediu que eu a deixasse em paz.
Depois, foi a vez da mãe. Se solidarizava com a minha dor, mas era melhor que a
esquecesse. Chorou comigo e tudo.
Finalmente, como eu não cedia, pediram
para Rick me contar que ela já estava namorando de novo, um velho amigo da
família, mas que tudo acontecera depois da separação. Soquei o espelho do
banheiro e levei doze pontos na mão.
Lentamente, por necessidade de retomar
o trabalho e não por convicção, parei de procurá-la. A dor, no entanto, ainda
era como uma febre intermitente. Rick aparecia lá em casa, duas ou três noites
por semana para conversar, contava dos filmes que tinha assistido, falava de
seus planos para expandir a fábrica, queria saber se eu tinha comprado algum
disco novo. Eu escutava com estupor, o olhar fixo no vazio da televisão. Uma
vez apareceu com duas amigas. A essa altura ele já estava casado, ostentava uma
aliança que parecia ter com mais ouro do que as reservas de vários países, mas
as moças não pareciam se importar. Bebemos vodka e propuseram irmos, todos, a
uma boate. A morena gentilmente se ofereceu a ficar comigo quando eu disse que
não queria ir. Acabei pedindo que todos fossem embora.
As noites demoravam a passar, eu não
dormia, mas também não conseguia fazer nada. As fitas que pegava no vídeo clube
se acumulavam sobre a televisão e eram devolvidas, com dias de atraso,
intocadas.
Depois de algumas semanas, tive forças
para eliminar do apartamento todos os rastros dela: fotos, bilhetes, cartas, as
roupas que ela tinha me dado ou ajudado a escolher. Coloquei tudo numa caixa de
papelão, levei ao arpoador e ateei fogo. Rick comemorou, propondo uma noitada
com outras amiguinhas. Mas eu não estava pronto.
No fim do ano fiz uma viagem à Europa.
Percorri o circuito dos queijos favoritos de Julio, tomei os melhores vinhos
que o minhas economias de professor puderam comprar. Conheci queijarias
famosas, visitei propriedades seculares, onde fabricar queijos era quase uma
religião. Nos dias mais longos, viajando por estradas secundárias, seguindo
mapas desatualizados, e querendo aproveitar o máximo de cada região, só
mergulhava na tristeza quando retornava ao hotel.
Voltei melhor, já podia ver as coisas
continuando sem Carol, mas ainda não me animava a recomeçar minha vida afetiva.
Não queria nem ouvir falar naqueles encontros arranjados, tão artificiais. E
tinha medo de me aventurar e enfrentar o ritual de conhecer alguém,
compartilhar os gostos, ir ao cinema, jantar em lugares românticos, o primeiro
beijo. Rick disse que quando aparecesse a pessoa certa, esse temor
esvanesceria.
Umas poucas noites depois dessa conversa, acordei
sobressaltado. Completamente molhado de suor. Arrepiado da nuca ao cóccix, os
pelos do braço eriçados. Com sono, demorei a perceber o que tinha acontecido:
Eu tinha tido um sonho, o primeiro erótico sem Carol, desde a separação. Nele,
eu estava cercado de prostitutas, algumas completamente nuas, outras vestidas
com roupas colantes. Todas trocavam carinhos e se beijavam. Uma delas veio me
chupar, mas antes gritou uma série de indecências, me xingou.
O short do pijama, além do suor, estava
melado.
O coração disparado, a
carótida latejava. Comecei a rir. Era o começo da cura pela via do
anti-romance.
Tomei um banho gelado.
Era tarde, mas resolvi sair para
comemorar. Onde? Num puteiro, é claro.
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