Eu estava me tornando adolescente. E
além da típica dureza entre as pernas, eu tinha que conviver com a dureza de
grana. Na semana anterior eu tinha sido convidado, pela primeira vez, para uma
festa de quinze anos e não poderia ir porque não tinha dinheiro para comprar
uma roupa adequada. Naquele dia, acordei aborrecido, passei o dia lançando
farpas na escola e agora tinha chegado a hora da minha mãe receber a parte
dela. Enquanto fazia o dever de casa, comecei a praguejar em voz alta, reclamar
do que não podia ter, que tinha que estudar mais do que os outros (o que não
era verdade), essas coisas. Esbravejava a esmo, e como ela não reagia, resolvi
ser cruel. Comecei a dizer que preferia ser filho do meu tio Augusto, e ser
como meus primos que tinham tanto e eram tão mais do que eu. Eu sabia que minha
mãe escutava, enquanto acabava de lavar os pratos do jantar. Quando terminou de
arrumar a cozinha, se aproximou e sentou num banco baixinho, ao lado da mesa na
qual eu estava simulando fazer o dever de casa. Não sei se tive medo de
apanhar, mas fui minguando até que parei. Mas ao invés de falar das
dificuldades financeiras da família e de como ela não podia contar com meu pai
para ajudá-la (na verdade essas coisas eram equivalentes), ela começou a falar
do seu irmão mais velho e de como ele roubou meu avô nos negócios; da sua
obsessão em ganhar dinheiro; dos casos que minha tia mantinha fora do casamento
e como ela sempre dava um jeito do tio descobrir; de como meus primos eram
infelizes nas suas camisas floridas de surfwear, das frustrações que não podiam
administrar e tentavam inutilmente compensar consumindo. E o pior: de como
todos, que aparentavam tanta felicidade, quando estavam à sós, em casa, nem se
falavam. “-Li uma vez em algum lugar, deve ter sido numa revista, que se
você vir um mar de rosas, não esqueça que logo abaixo da superfície há um
oceano inteiro de espinhos .”
A única revista que ela lia era
Seleções do Reader’s Digest. Histórias edificantes cheia de bons exemplos. Meu
pai e meu irmão riam quando ela evocava algum pensamento extraído de lá, mas eu
não. Já sentia culpa bastante só por desprezar tudo o que ela prezava, mesmo
que em silêncio.
Se o objetivo dela era me consolar
exibindo as fraquezas da família, o tiro saiu pela culatra. Se meus primos
consumiam porque eram infelizes, eu também era! Mas não consumia. Minha camisa
mais nova tinha seis meses. Além do mais, ela e papai não se entendiam tão bem
assim para que isso me servisse de compensação. O que ela conseguiu foi
destruir minha ilusão de família perfeita.
No dia seguinte, meu pai me chamou.
Tinha escutado a conversa. “Quero fazer um ou dois comentários”. Ele ficava
sério quando ia discordar de minha mãe, precisava se concentrar para
contrabalançar sua falta de jeito com as palavras. “-Sua mãe vê as coisas só
pelo lado que convém a ela. Pelo que eu sei, o único amante que sua tia teve
foi um amigo do seu tio e ela pediu a separação para viver com ele. O Augusto é
que implorou para que ela ficasse, principalmente porque seus primos eram
pequenos. Sua tia acabou cedendo. E ele também já aprontou as dele, com a secretária e até com clientes. Seus primos
são infelizes ou felizes como qualquer um, nem mais nem menos. Ninguém é o
tempo todo nenhuma das duas coisas. De tudo o que sua mãe disse, o único fato
verdadeiro foi o seu tio ter passado a perna no seu avô. Aproveitou que o velho
estava adoentado e praticamente o expulsou dos negócios.”
Em seguida quase estragou tudo: “O seu
avô, antes de ficar doente me chamou para contar que estava pensando passar a
firma para mim”. Isso era o mais completo absurdo. Mais de uma vez escutei vovô
falar da incapacidade de meu pai em administrar qualquer negócio.
Mesmo assim, dei-lhe um abraço. Por ter
resgatado meu direito à inveja!
Meus espinhos são as
lembranças (talvez os de todo mundo).
Também é ficção?
ResponderExcluirComo disse o Philip Roth certa vez a um jornalista que perguntou o que, em seus livros era autobiográfico: "A pergunta certa é "O QUE NÃO É?"
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