Criaturas de Aire é um livro composto por 32 monólogos "escritos" por algum personagem histórico ou de ficção. Drácula, Mister Hyde, Sherlock Homes, o apóstolo João, Bakunin,..., cada um deles tem sua alma, sua essência, exposta pelo escritor, filósofo e professor catedrático de Ética na Universidade do País Basco, Fernando Savater.
Desde que o adquiri em 1990, numa da inúmeras livrarias da Calle Callao, em Bs.As., é um dos meus livros de cabeceira.
Um dos trechos que mais gosto é o monólogo de Peter Pan. De maneira surpreendente, Savater extrai aquilo que está apenas nas entrelinhas da obra de J. M. Barrie.
Fala PETER PAN
Eu vou te ensinar a voar, menina Wendy. Venha, feche os olhos,
estenda os braços, respire muito fundo pelo nariz, salte ao norte, busque tua
estrela ... Venha. Serei teu irmão, teu anti-pai, vamos juntos como balões
vagando, como meteoritos ascendentes e preguiçosos, com o vento de cima despenteando-nos
carinhosamente como se fosse a mão bruta mas tenra do herói, que de seu cavalo, coloca sobre a cabeça
da criança que o admira quando ele passa.
Subiremos, Wendy: não há nada
como voar! E riremos, riremos, porque o riso é o combustível do nosso vôo, a propulsão que vence a gravidade do impossível. Para voar, há que se deixar de
ser sério e rir ... Quer saber para onde iremos? Você já imagina, mas como você gosta de ouvir
novamente vou repetí-lo: Terra do
Nunca. Para chegar lá, não há necessidade de viajar muito, apesar que a distância
que nos separa é intransponível para maioria. Para chegar à Terra do Nunca não há que mudar para lá,
mas transformar-se, e isso é algo que não resolvem as agências de viagens. Ou
melhor, não transformar-se, resistir à vertigem de mudança que nos leva à velhice,
morte e respeitabilidade responsável. Temos que nos tornar imutáveis, Wendy,
devemos nos tornar permanente imutáveis. Para sermos eternos temos que ser como
crianças.
Pode-se ser como uma criança sem
ser uma criança? Esse é o único problema real. Porque, considerando todas as
coisas, a criança é a negação mais flagrante da imutabilidade e do permanente. Perto de suas constantes mudanças dia a
dia, minuto a minuto, a petrificação estável e conservadora de um velho é um
monumento de granito. Quanto mais crescemos, menos mudamos é o que me disseram (você
pode imaginar como é difícil para mim, falar essas coisas, eu não sei crescer).
Nos primeiros cinco anos de nossas vidas sofremos transformações infinitamente
mais importantes, quantitativa e qualitativamente do que nos setenta ou noventa
seguintes. Ser uma criança imutável é um círculo quadrado: o auge é mais rápido
do que a decadência, ou melhor, o auge é a forma mais rápida da decadência e a decadência é um auge que está começando
a frear.
Oh, Wendy, eu só queria te
ensinar a voar, falar de piratas, da Terra do Nunca, de índios e animais selvagens, e aqui estou a dar-lhe uma lição metafísica
sobre o problema do tempo! Mas não caia, minha menina: subamos, subamos,...
Deixe-me falar sobre o Capitão Gancho, mesmo que seja apenas para amenizar
nossa viagem à Terra do Nunca. O Gancho, que é um bom pirata, quero dizer, é muito mau, um traidor, presunçoso,
prepotente, fanfarrão e invejoso. Ao Gancho eternamente lhe persegue um
crocodilo: Aquele bicho que comeu certa vez o seu braço esquerdo, com o relógio
e tudo, e gostou tanto que só pensa em comer o resto. Mas o relógio
tiquetaqueando adverte ao Gancho que seu inimigo se aproxima: vive fugindo, o coitado, desse relógio
que pretende devorá-lo e que, mais cedo ou mais tarde, conseguirá. Para mim é a
mesma coisa, você não vê? Gancho e
eu somos irmãos de crocodilo, ou, se você preferir, nós choramos as mesmas lágrimas
cocodrilescas quando ouvimos o som de um relógio - o dia em que acordarmos, o
dia em que o crocodilo nos alcançar- vamos nos tornar irmãos, Gancho e eu, irmãos
de crocodilo e da Terra do Nunca, irmãos da princesa índia raptada, irmãos de ócio
e aventura, irmãos improdutivos, audazes,
inconstantes, supérfluos,... Ninguém entende o Capitão Gancho como eu. E ninguém me entende como ele: por isso somos inimigos mortais, pois o ódio é também uma
forma de parentesco, não menos nobre, acredito. Você me pergunta qual o
crocodilo que leva o ameaçador relógio do meu tempo em sua barriga? Por favor,
Wendy , há muito que não falo de outra coisa: você é o crocodilo que segue meus
passos pelos caribes da Terra do Nunca, você é o cronômetro que envenena a
eternidade improvável a qual reclamo. Você é aliada daquilo que vai me banir à maturidade ... Minha doce; ansiosa
e anseio; minha fugaz, Wendy!
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