A última sexta-feira do mês era o dia
de colocar a conversa em dia. Há cinco anos instituímos este compromisso para
não perdermos o contato.
Conversar e beber, as únicas coisas
simples da vida. Pelo menos a segunda.
Na Adega Pérola, Beto, o único garçom,
controlava os pedidos em papéis cortados à faca presos com borboletas de metal,
numa tabuleta pendurada na parede. Tudo lowtech, tudo funcionando. Chegamos na
hora perfeita, entre a saída do pessoal que emendou o almoço e a turma do fim
da tarde, e meia hora depois já estávamos calibrados.
“Rick, deixa eu te lembrar uma coisa:
as pessoas são mais possessivas quando se trata de amor do que de dinheiro.”
“Deixa de filosofar, Frank, e pede mais
dois.”
Nem foi preciso. Beto identificou
nossos copos quase no fim e acenou que já ia trazer mais.
Acrescentei, “Mas se para os homens, o
sexo é que baliza a posse, trair é trepar; as mulheres tem outra visão, no meu
entendimento, mais avançada. Para elas, uma intenção pode ser tão, ou até mais
terrível do que o ato. Infelizmente, é uma sutileza que aprisiona. Um bilhete
encontrado no bolso da camisa pode envenenar, deu mole pra ela, safado, eu te odeio, está tudo acabado entre nós,
essas coisas. Nós somos mais realistas. Imagine se alguém conta que tua
mulher está sendo assediada por um colega do escritório. O que você quer saber
imediatamente? Ela deu? Ah, foi só um flerte ? Então, tudo bem, faz parte do
jogo.”
“Mas isso, só quando o homem não está completamente
apaixonado, né? Senão tudo isso é bobagem, o cara se emputece , parte pra
porrada...”
“-Você não está entendendo. Os homens pensam em sexo uma vez
a cada minuto enquanto as mulheres apenas uma vez a cada vinte e quatro horas!
O sexo é o divisor de águas para os homens, para as mulheres é a cumplicidade,
o compromisso. Nos últimos anos isso anda meio zoneado, muita gente conseguiu
mesclar as duas idéias.”
“Sempre cheio de explicações simples
para tudo. Mas o mundo tem outros tons além do branco e preto. Eu me pego
pensando bobagens todos os dias, tudo o que construímos, a vida toda, pode
estar por um triz.”
Será que ele estava com problemas no
casamento? Não! Era somente uma conversa teórica entre amigos. De qualquer
jeito, resolvi incomodar. Nossa amizade até permitia uma abordagem mais direta,
porém eu queria uma revelação inconsciente, algo ia acabar aparecendo, então
cutuquei.
“Branco e preto não são tons, são
cores, e eu não reduzo as relações a sim ou não, feliz ou infeliz. Você é quem
age assim, ou faz coisa pior: você as idealiza. Imagina que sabe o que o outro
pensa, ou quer. Nem sempre um sorriso quer dizer tudo bem. Nem sempre uma cara feia quer dizer não te amo mais. O que há são mais tons de cinza que os duzentos e
cinqüenta e seis que o monitor consegue mostrar.”
Ele mordeu a isca e atacou.
“Sempre com a sua ironia, suas sacadas
geniais, o espirituoso frasista. Mas isso não ajudou a manter seus
relacionamentos, quando elas descobrem que além dessa camada de intelectual
divertido há um egoísta que não quer ter filhos porque fez a conta de quanto
isso vai custar, elas caem fora.”
Essa resposta me colocou em alerta. Tentei
captar o que estava passando, recapitular nossos últimos encontros em família.
Quando tinha sido a última vez que eu tinha estado com eles? Lembrei, foi no
aniversário dele. Não notei nada diferente, uma festinha como todas as outras.
“É verdade. Fiz e a mantenho atualizada
para não errar por falta de conhecimento. Parto, creche, escola, viagens de
férias, plano de saúde, curso de inglês, esportes, universidade, está tudo lá.
O custo/benefício de ter filhos hoje em dia não compensa. É um investimento irrecuperável.”
“E o amor como fica ? Filhos são uma
conseqüência lógica do amor. Não querer ter filhos, Frank, é admitir seu
fracasso no amor.”
“Sobre ter filhos vou dizer o que eu
penso. Durante muito tempo eu achei que as pessoas queriam ter filhos para ter
quem as amasse para sempre. E pensava o quanto isso tinha de egoísmo. Um amor
que sobrevivesse as paixões e aos casamentos. Recentemente percebi o quanto eu
estava errado. As pessoas têm filhos para ter alguém que possam amar para
sempre. Isso exige muito mais egoísmo.”
“Vou dizer o que penso”, disse elevando
a voz. “É muita pretensão se julgar capaz de saber a motivação das demais
pessoas. Então, quem vai generalizar agora sou eu. Como todo homem sozinho,
traído e mal amado você desdenha dos que souberam consolidar uma vida diferente
da sua. Tua conversa é o papo clássico de corno.”
Definitivamente as coisas não estavam
cem por cento e ele não estava pronto para pedir ajuda. Ou era eu que
continuava imaginando problemas inexistentes? Nem tínhamos bebido tanto assim.
Rick tinha um problema com a solidão. Para ele, viver só, era a forma
derradeira de fracasso. Por outro lado, já tínhamos rido tanto com a história
da obra que fiz no apartamento. Ao derrubar todas as paredes, criando um
ambiente único, ergui uma barreira de proteção. E transparente! Uma divisória
de vidro entre o banheiro e o resto. O vaso sanitário também é transparente,
comprei na Itália, é uma peça de design, e custou uma grana firme. As
convidadas logo percebem que ficar por lá, toda a noite, significa em algum
momento ter que mijar ou cagar à vista do lindinho aqui. Tudo para evitar meus
improváveis, mas não impossíveis impulsos pelo padrão estabelecido, e também os
constrangimentos no dia seguinte, quando elas esperam um “-bom dia!” cheio de ternura e eu já estou pensando quem vou comer
da próxima vez. Depois de gozar, o momento de retomar o controle. Não deixa de
ser engraçado, tanto tempo aprendendo como levá-las para a cama e para quê ?
Agora, o importante é que elas saiam depressa! Por mais fantástica que tenha
sido a transa lá está o vaso sanitário, imponente, no centro das atenções. Elas
podiam ignorá-lo algum tempo, mas não o tempo todo. Eu não pedia que ficassem,
e nem elas queriam. ”Ei, você pode chamar um táxi, por favor, tenho que acordar
muito cedo amanhã?” Isso não impediu que alguns romances durassem meses, mas
sempre com a cama inteira para mim no fim da noite. Eu não tinha contado que a
estratégia se mostrou cem porcento confiável apenas com mulheres de trinta anos
ou mais. Logo a primeira ninfetinha que levei para casa, não só usou o vaso
transparente como ainda perguntou se eu não queria chegar mais perto para
olhar. “Eu também tenho um fetiche por essas coisas”, disse. Eu nem respondi.
Outras duas confirmaram a tese , e agora, se têm menos de vinte e cinco,
levo-as para um motel. Então o que estava em questão era outra coisa, eu só não
sabia o quê. Estávamos nos ferindo, mesmo assim continuei.
“Fracasso é não querer viver numa
mentira? Para que almejar relações duráveis se a química da paixão dura dois,
três anos no máximo? O que você chama de meu fracasso é a vitória sobre as
convenções. Vitória duramente conquistada. E não pense que nunca apareceu
ninguém capaz de bagunçar o meu esquema. Neste exato momento tem uma garota que...
”
“Você é patético. Quando a Carol te
abandonou, ficou um tempão sem transar porque, eu me lembro bem dessas
palavras, “Só quero fazer com ela”.
Sabe por que você foge dos relacionamentos mais sérios? No fundo você continua
aquele moleque abobalhado, que não via que elas queriam namorar você, porque
seu medo da rejeição era maior. Tudo que você fez foi transferir suas
inseguranças para depois do sexo. Você continua com quinze anos.”
Essa não era a sua voz, ele estava
falando qualquer coisa para ganhar a discussão, mas mesmo assim eu fiquei puto
da vida. Porque ele tinha conseguido. Aquela era uma boa descrição minha.
“Admito que fiquei sem rumo. Porém,
escute bem, nessa armadilha não caio mais. Não vou casar, ter filhos, família,
netos. Não quero saber das coisas boas que isso traz. Aposto que para cada uma
boa tem dez ruins. Só uma pergunta: o que você entende sobre ser rejeitado por
uma garota? Você sabia que todas as outras pessoas do universo têm medo de
tomar um “NÃO” como resposta a uma investida? ”
Nem respondeu, olhava com atenção para
o copo como se fosse emergir dali o monstro do Lago Ness.
Pedi a conta.
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